Fala o órfão
inédito
“Estou de volta à
Cidade que, através de um homem e de uma mulher que se amaram, me deu
nascimento.”
A
31 de Maio de 2010, assim começava – e ainda começa – um livro que ainda não
arranjei maneira de publicar, concluído que o dei a 3 de Março de 2011. Os três
cadernos manuscritos que o enformam, esses preenchem com obstinada paciência a
gaveta-alta do roupeiro. Não desisti dele(s) – como na vida, tudo é uma questão
de tempo: para o sim como para o mal, para o não como para o bem.
Tenho,
por estes dias, relido esses meus dias embalsamados de 2010/11. Era afinal simples,
o mote: tinham-me avisado por telefone de que a Mãe iniciara a descida
terminal. Contra todas as efabulações mais racionais, também ela era mortal. Dei
por mim retornando, pois, ao local-do-crime perdoável de ter nascido de gente d’ali/'qui.
A partir da minha escrita irreconciliável, a Mãe durou ainda nove meses &
três dias – em espécie, digamos, de anti-nascimento, de avessa gravidez de si-mesma,
já ela sem marido embora há dezassete anos. Nesse derradeiro dia de Maio de
2010 (uma segunda-feira), decidi-me por a confecção de uma memória presente,
diarística, ubíqua, vigilante, pessoalíssima. Quase oito anos volvidos, não
enjeito o escrito. Atenção: não se trata de lamentosa escritura do tipo coitadinho-de-mim-que-estou-para-ser-órfão.
Não. Nada disso. Não é coisa impermeável à dor antecipada, pois não. Também não
é coisa alheia à solidão essencial (de ser)
de todos os eus. Lá está, nessa mesma
primeira página manuscrita a tinta preta: “Ando
sozinho – como toda a gente na vida.” De toda a maneira, e/mas enfim, o
sobredito livro por publicar é um depoimento sem solipsismo umbilicalista de espécie alguma. Receio
só que seja, também & ainda, um livro de amor. Intitulei-o “Leite dos Santos – Um Ideário de Coimbra”.
A razão titular é esclarecida na dedicatória epigráfica: “In Memoriam Viva de Hermínia Leite dos Santos (27 de Outubro de 1924 –
3 de Março de 2011)”. Muito simples, muito claro, muito directo ao assunto,
muita terra-mãe-a-mãe-terra.
Por
virtude ou defeito de cronicar agora sobre tal inédito talvez impublicável,
recordo esses meus dias na terra-de-ninguém que foram os de me perder da Mãe. A
vulnerabilidade era-me total. Eu (man)tinha então uma imitação de trabalho:
ensinava num curso profissional que não pagava mal, com dois a três meses de
atraso embora. Sobrevivia materialmente num quarto de celibatário contrariado: a
mulher anterior, inteligente e/ou manhosa, tinha-me desertado a ocorrência em
prol de um homem melhor. Não sem militância, emaranhei-me de muita leitura, muita
taberna & muito desamparo. Vi-me febril & fabril de dias quentes como
infernos portáteis & de noites regeladas pelo mau costume de pensar
nela(s): na Mãe como nas noites mesmas.
O
Verão de 2010 aconteceu à maneira de tragédia lenta. Recordo a intolerância
solar das visitas ao Lar onde a Mãe, qual flor anacrónica, aprendia a vegetar
sem mãos ao volante da bicicleta. Era o meu verdadeiro trabalho, a minha única
importância. Eu já só (a) escrevivia. De volta de cada visita, recolhia-me ao
tasco sob o viaduto para fazer de conta que o mundo existia à face, et pour cause, do balcão dos deserdados
da vida. Cometi muitos versos. Nem todos saíram mauzitos. As noites vinham à maresia
seca da Cidade só fluvial.
Uma
dessas noites, choveu muito. Recordo: o meu casaco de bombazina
cor-de-nestum-com-mel passou a pesar quilos de tão ensopado, eu não me abrigara
– nunca até então o houvera feito na vida, como naquela noite o não fiz também:
& até hoje o não faço. Chegado ao quarto pré-sepulcral, ri-me sozinho como
os doidinhos da minha condição de cavalinho-não-tirado-da-chuva.
O
Inverno posterior foi o humanismo do costume: hirta, tiritando, a Cidade
celebrou o Natal, essa tragicomédia que faz do cristianismo o Carnaval de
costume do consumo irracional. No quarto emprestado por esmola, libei o
nascimento do Cristo à morte-para-breve da Mãe. Segui escrevivendo a
sobrevivência possível. O porvir era já então o que aqui reitero: uma orfandade
lúcida, provida tão-só de pouquíssimas certezas ancoradas na racionalidade da
desesperança mais pragmática.
Como
disse, o livro está por publicar. Não apenas tem tempo ainda de sê-lo – pois
que houve tempo de tê-lo sido. Lamento tão-só que a senhora minha Mãe não possa
lê-lo. Pelo menos, até 2 de Março de 2011, essa véspera de mais-nada a partir
da qual tudo se me torna tão improvável quão o caraças de um editor honesto, a
havê-lo, entre os intervalos de quanto hoje chove, que amanhã faz sol, que 2018
já cá canta(m).
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