29/11/2017
23/11/2017
EFEMÉRIDE COM ASAS & GARRAS - Rosário Breve n.º 531 in O RIBATEJO de 23 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Efeméride com asas
& garras
Novembro
é muito mnemónico para mim, tirante os outros onze meses de cada anuário. Vós
tendes lido que sim, não ireis agora desmentir-me sem sequer me dar cá por esta
palha.
Foi
a 1 de Novembro de 1981. Sétimo de sete filhos, era eu finalmente dono &
senhor do meu quarto de celibatário sem pulsões esquisitas de adolescente
esquizóide.
Seis
meses antes dessa fatídica data, um pardal perdido escabeceara em desespero a
vidraça da minha janela. Não tinha leme de navegação. Isto é: não tinha cauda.
Recolhi-o na terra como quem colhe do céu uma esmeralda castanha. Dizem que os
pardais não são de cativeiro. Coitados. Percebem nada da coisa. Os pardais,
como as pessoas que o mereçam, são de quem os ame – mesmo sem rabo. E cativeiro
nunca foi amor, a não ser nas Endechas
que Camões dedicou a Bárbara.
Chamei-lhe
Cachopo. Nunca mais saímos do quarto,
claro. Acabei o 12.º ano com a dificuldade própria dos maridos emigrados no
Luxemburgo que deixam na aldeia as mulheres ao deus-não-dará. Durante aquele
feliz semestre irrepetível, o meu Pardal escagaçou com alegria a minha colecção
completa das Obras idem do meu amado
Eça. E o meu Conan Doyle todo do meu Sherlock. E os meus primeiros Cortázar,
Calvino, Camilo, Camus: todos por C como
o meu Cachopo.
Dava-lhe
água de beber pela boca. Pela minha boca, digo. Ele sentia o copo a içar-se aos
meus lábios. Vinha logo, torto como o bêbedo que eu vim a ser, poisar-me na
cabeça. Descia-me a orelha pela suíça. E bebia-me da boca como jamais mulher
alguma foi jamais capaz de fazê-lo.
As
moscas gordas desse Verão foram a nossa comum alegria carnívora. Nunca
spray-fumiguei o meu quarto. Não, nada disso. Esperava por elas entre vidraça e
cortinados. Esmagava-as com a delicadeza que me é própria e que Vós tão bem
sentis nestas crónicas lacrimosas. Depois, sobre o mesmo papel onde eu já então
escrevivia os meus versos ilegíveis, dispunha-as em parada de morgue. O Pardal
vinha comê-las, uma a uma, como quem vai ali à cervejaria comer devagar o
bife-da-casa. O resto era A&A&A: Água, Arroz & Amor.
A
1 de Novembro de 1981, comigo fora de casa, o meu Irmão Fernando deixou-me
entreaberta a porta do quarto. Em casa de meus Pais, não trancávamos portas.
Era como (não) fazíamos ao coração – o que deu no que nos (não) deu para o resto
da vida.
Um
gato vizinho entrou e matou-(m)o. Dei com o meu Pardal sob as patas do felino,
morto já e pronto a ser comido como uma mosca das que eu criava para ele.
Pontapeei o gato com a força do desespero. O desespero deu para o gato ir bater
no caule do cedro a cinco metros de lonjura. Não consegui acabar de assassinar
o assassino. Mas nem eu era Cristo, nem o meu Cachopo podia ser Lázaro. Sepultei-o à vista da janela do quarto
que foi nosso. Usei uma caixa-de-fósforos de cozinha como ataúde. Não orei por
ele: Deus não existe.
Depois
disso, o mesmo gato levou-me o meu Irmão Jorge & os meus Pais. Mais alguns
Amigos. É um gato P&P&P: persistente, profissional, permanente.
E
nunca tem o rabo de fora, como Deus costuma ter.
16/11/2017
No táxi 17 do senhor Silva (ou Um doutor de rostos) - Rosário Breve n.º 530 in O RIBATEJO de 16 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
No táxi 17 do
senhor Silva
(ou Um doutor de
rostos)
Aconteceu-me
a 3 de Novembro do corrente ano. Eu tinha passado a manhã, a hora de almoço e
mais duas horas a escrever. Coisa infelizmente rara, chovia. Eu tinha um euro e
sessenta cêntimos na algibeira. Por volta das quatro da tarde, entreguei à
gerência do Café os sessenta cêntimos da bica.
Pus-me então a pé, de derradeira moeda de euro no bolso, a caminho de outro
estabelecimento onde pudesse aproveitar o entardenoitecer para escrever ainda
mais qualquer coisita. Aproveitei uma aberta pluvial e ala que já era (de)
tarde. Fui andando. Voltou a chuviscar a meio do meu percurso. A descer, todos os santos ajudam, mas a
subir nem o Diabo empurra. Ora, eu ia subindo.
Foi
então que a meu lado, a meio de uma ladeira mais íngreme do que a minha
carreira literária, parou um táxi. Disse-me o senhor taxista assim: “ – Amigo, para onde vai?” Eu
respondi-lhe que “para tal parte
assim-assim”. E ele para mim: “Calha
bem. Vou buscar aí mesmo um cliente. Entre, amigo, que está de chuva. Temos de
ser uns para os outros.” Eu fiquei siderado. Ainda tentei dizer-lhe que não
trazia comigo dinheiro nem para a bandeirada
da porta do lugar-do-morto. Ele, todavia, nem quis saber. Mandou-me entrar sem
encargos quaisquer. Entrei. O trajecto era breve, mas deu para frases trocadas.
Ele
disse-me que era o Silva do Táxi 17. E mais disse: “ – Eu parei porque vi que a sua cara era a de um homem sério, honesto
e trabalhador. Vai daí, nem hesitei. Dou-lhe boleia com todo o gosto. Sabe, eu
ando nesta tarimba de taxista há 51 anos. Já sou uma espécie de doutor de
rostos. Tiro-os logo pela pinta.”
Depois,
perguntou-me de onde eu era. Eu disse-lhe a verdade: “ – Sou daqui perto, dali da Pedrulha.” E ele então assim para mim:
“– Essa é boa. Tenho lá um concunhado. É
o António Lucas, conhece? Ele é casado com a irmã da minha mulher. A minha é
Natalina e a dele é Maria.”
Eu
conhecia, claro. E repeti-lhe a banalidade de o mundo ser pequeno. E
acrescentei: “ – Mas a sua bondade para
comigo não é pequena como o mundo. Fico-lhe muito grato.”
Deixou-me
na esplanada que eu almejava. Fiquei sem poder escrever uma linha. Tinha sido
“vítima” de um acto filantrópico da parte de um desconhecido. Não podia ser. De
novo a pé, rumei à minha terra. Fui a casa do meu Amigo Tonito Lucas.
Contei-lhe o que se tinha passado. Já era esta crónica em andamento.
E
o Tonito assim para mim: “ – Eh pá,
tiveste sorte! O Silva é um porreiraço. Entre colegas da profissão, até lhe
chamam “doutor”. Ele sabe tudo do
ofício e não se importa nada de ensinar os mais novos no ofício.”
Pedi-lhe
mais esclarecimentos. O senhor Silva é homem para 75, 76 anos. É casado desde
sempre com a Natalina, irmã da Maria do Lucas. É ali de Vale de Marelo, Semide.
Tem duas filhas (Margarida e Catarina) e dois netos (Fábio e Ricardo).
Trabalhou desde cedo em fábricas de fiação. Depois fez tropa em Moçambique. Ainda
trabalhou para o Serviço de Águas e Saneamento do município de Coimbra. Passou
depois a taxista empregado. Logo que pôde, tirou alvará profissional e
tornou-se patrão de si mesmo. Até hoje. Ou: até dia 3 de Novembro passado,
jornada de chuva em que me deu boleia sem ser por esmola mas por pura
solidariedade humanista.
Lembro-me
de ele me ter perguntado o nome. Eu disse-lhe a verdade: “ – Sou Daniel.” E só então percebi toda a verdade: havendo-me dito
ele que o meu rosto era de homem sério,
honesto e trabalhador – e para mais chamando-me Daniel –, o senhor Silva do
Táxi 17 não me tinha dado boleia a mim. Tinha antes, sim, tirado da chuva o
senhor meu Pai. Esse sim sério, trabalhador e a honestidade em pessoa. Ou por outras
palavras: o senhor Daniel meu Pai, sócio póstumo do senhor Silva do Táxi 17.
09/11/2017
Efeméride com recado - Rosário Breve n.º 529 in O RIBATEJO de 9 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Efeméride com
recado
1 Foi há quarenta
anos. A 5 de Novembro de 1977, vi publicado, pela vez primeira na vida, um
texto meu. E logo no suplemento literário infanto-juvenil de um jornal de
âmbito nacional. Eu tinha treze anos – e o senhor meu Pai era comprador e
leitor quotidiano de dois diários nacionais, nesses anos em que o 25 de Abril
ainda era uma data relevante. Era também a época de leitura & análise integral
de obras portuguesas logo nos 7.º e 8.º anos de escolaridade. Fui abençoado por
duas delas: Esteiros, de Soeiro
Pereira Gomes, e Seara de Vento, de
Manuel da Fonseca. Notareis facilmente certos resquícios neo-realistas no tal
meu primeiro texto em letra-de-imprensa. O título é algo Vivaldiano, mas não vos equivoqueis: a coisa era mesmo de ter lido e amado o meu Soeiro e o meu Fonseca.
Eis, pois, o dito:
2 AS
QUATRO ESTAÇÕES
Quando chegou a
Primavera / transbordou vida nos campos e nos / olhos dos homens. Houve até
quem / dormisse por entre madressilvas / congeminando formas de melhorar / a
vida. //
E no Verão, quando
o sol ardente / lambeu os corpos e tornou mais / difícil o trabalho aos
aldeões, os miúdos / assaltaram o rio, buscando / na frescura das águas
aventura e / desporto.
Chegou o Outono. As
folhas das árvores caem como / lágrimas que largam o que foi / a sua companhia.
E a poesia dos homens / morre com o enterrar das enxadas / na terra de sempre.
//
Mas cai o Inverno,
e não transborda agora / vida nos olhos dos homens, nem os garotos / procuram
aventura. A chuva / encharca a terra e alaga a alma / aos homens. Afoga-se na
taberna / o desejo de progresso. / Terras de sempre. //
3 Pessoal, atenção
& cuidado: esta evocação nada tem de auto-adoração. Nada disso. Tem outro
intuito. E o outro intuito é este: mandar recado a um dos 21 presidentes de
câmara eleitos no 1.º de Outubro recente. Recado: Senhor Presidente, não acho
que o senhor saiba quem foram Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fonseca. Senhor
Presidente, acho que V.ª Excelência nem lê as minhas crónicas neste Jornal
(embora eu tenha a certeza de que a seus augustos pavilhões auditivos são
sopradas as partes-gagas das ditas crónicas a seu respeito.) Ainda assim,
Senhor Presidente, há duas outras obras cuja leitura talvez melhorasse o que o
senhor (des)faz à & da sua terra. Essas obras são: Dinossauro Excelentíssimo, do português José Cardoso Pires, e O Outono do Patriarca, do colombiano
Gabriel García Márquez.
Se
não tiver pachorra para lê-las de fio a pavio (até porque nenhuma delas tem bonecos), vá o Senhor Presidente ao Google à cata de resumos fáceis dessas
magníficas narrativas. Ou então, em generosa contraproposta minha, não ligue
nada nem a mim nem a livros. Aproveite antes o tempo do seu mandato para fazer
com que o território a seu (in)feliz (co)mando se não torne, sabe o Senhor em
quê? “na terra de sempre”.
02/11/2017
Fala o Senhor Professor Abelha - Rosário Breve n.º 528 in O RIBATEJO de 2 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Fala o Senhor
Professor Abelha
Sou
um fulano de rotinas. Sou-o de facto. Talvez o seja pela dupla ilusão da
segurança e da sobrevivência. A perna das calças em primeiro é sempre a
esquerda. Levo sempre o mesmo número de cigarros na cigarreira. Frequento dois
Cafés: um de avenida à sombra de tílias; outro de urbanização popular, a cuja
praceta preside um choupo todo bonito. A bica matinal é no das tílias; o resto
das beberagens é no do choupo. No bornal, os cadernos a manuscrever vão na
horizontal; os livros a consultar, na vertical. Os lápis só convivem com os da
sua raça no lado esquerdo do estojo triplo. A caneta, os marcadores e as
esferográficas, no direito. Ao centro, borracha, afiadeira, tesoura, cola. É só
assim que posso ser feliz. E seguro. E sobrevivente.
No
Café das tílias, repito com os donos (Luís & Rita) sempre a mesma graçola
cifrada: que o copo de água é a sessenta cêntimos, enquanto a bica propriamente
dita é oferta da casa; no Café do choupo, peço coisas tipo “uma-ucal-fresquinha-com-meia-torrada-com-manteiga-só-dum-lado”.
Respondem-me que sim-senhor-Abelha. E servem-me o bagaço, naturalmente. É uma
forma de felicidade como (quase) qualquer outra. Neste mesmo estabelecimento, o
Martim (filho do casal que gere a casa, Leonel & Nélia), chama-me de vez em
quando para o ajudar nalgum pormenor dos trabalhos-de-casa: ler, escrever e
contar, sabem? O menino nem sabe a alegria que me dá: chama-me “Senhor
Professor” e depois aperta-me a mão como os homens de bem fazem uns aos outros.
Ontem ofereci-lhe livros próprios para a idade dele. Ficou contente, mas voltou
logo que pôde à caderneta de cromos da bola que anda a preencher.
O
problema é quando entardenoitece. Sinto-me invariavelmente perdido num
descampado feito de prédios alheios eriçados de casas a que nunca chamarei
minhas. Remedeio o embaraço pondo-me a cirand’ambular a pé pela noite como os
doidinhos & os guardas-nocturnos de antigamente. Como a Churrasqueira da
minha terra só fecha às 23h00m, para lá me dirijo. Chego-me a ela, adiro a
pança ao balcão e peço qualquer coisa tipo “uma-ucal-fresquinha-com-meia-torrada-com-manteiga-só-dum-lado”.
Respondem-me sempre: “Está bem, abelha.
Compreendi-te.” E servem-me o bagaço, naturalmente. Estou finalmente em
casa. Por assim escrebeber, perdão, escreviver, perdão, por assim dizer.
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