Mau tempo no curral
1. O curral me(r)diático nacional é sobrepovoado de “homens da embalagem prateada” e de “rapazes do gongo dourado”. Por assim
dizer. São reses pífias, gado repugnante a toda a decência cívica e impermeável
ao atavio ético das poucas pessoas-de-bem que ainda por aí haja. A corrupção à
portuguesa tinha de ter laivos afrobrasileiros. E tem. O colonialismo não
acabou – passou mas foi a ser de lá para cá também, relegando-nos o ultramar ao
estatuto de província que nunca deixámos afinal de ser. Mas calma. Nem era
disto que queria falar-vos. De Agricultura é que sim.
2. De “Agricultura”? Sim. Mesmo? Mesmo. Explicando: tenho andado a ler o Virgílio das Bucólicas, primeiro, e das Geórgicas, logo a seguir. Delícias de há
dois mil anos e uns trocos. Sabeis bem que me refiro ao mesmo grande Poeta da
épica Eneida. Claro, esse mesmo que
amou em Teócrito e Hesíodo o que Dante e Camões amaram nele: o verso perfeito,
o diapasão silábico, o frescor pitoresco e a rendida gratidão à Natura-Mater.
Esse todo. Mas adiante, que já semelho sacristão sonhando com o vinho
eucarístico que sobrou do santo sacrifício.
3. E a Agricultura? Que raio a ver com leiturices
clássicas e/ou corrupções pindéricas? Calma. Ter, tem. Tem e cá vai: tanto nas Bucólicas como nas Geórgicas (sobretudo nestas derradeiras), elogia-se vivamente o
desprendimento filosófico e a serenidade existencial resultantes da sã
interacção, pelo trabalho como pela fruição, com o campo, a vida nele, a
sabedoria da observação dos índices meteorológico-sazonais (as estações do ano,
pronto), o cultivo de tudo: árvores, solos, sabores e aromas, a maravilha
cíclica e ritual da dialéctica sementeira-colheita-poda-vindima. Até o
omnipotente instintozinho sexual que faz o gado parecer-se com a gente. Ou nós
com ele. E as abelhinhas. Não esquecer as abelhinhas.
4. Sim. OK.
Porreirinho. Mas – e portanto? Aquilo da Agricultura o quê? O portanto está em que eu, uma destas
manhãs, cedo como se nascesse, me achei achando, aos pés de um contentor
juncado, um suplemento em papel daquela coisa digital a que a Direita de cá da
parvónia chama Observador. Como
sempre faço, colhi do chão o lixo. Preparava-me para o esquecer no odre
municipal quando, de viés, o título me cativou: Dicionário dos Grandes Negócios, panfleto com textos de um Luís
Rosa e ilustrações de um Henrique Monteiro.
Já o não sacrifiquei à voragem benigna da reciclagem. Guardei-o no bornal,
cheguei à pastelaria, botei café a ferver para a entranha e fumei como quem
nunca há-de morrer a tossir. Tinha ante mim um dilema aparentemente fácil de
solver: Virgílio ou o pasquinzito das escandaleiras
inocentes-até-trânsito-em-julgado? Fraco, vim por estas. Virgílio, sendo
eterno, podia bem esperar um bocadito. Lixei-me. Passei o mor e o melhor da
matina a tresler, primeiro, e a sublinhar a fluorescente, depois, o coiso
achado no chão. Entradas alfabéticas: Azul
(Saco), Bataglia (Hélder), Bava (Zeinal), Espírito Santo (Família), Granadeiro
(Henrique), Loureiro (Dias), Salgado (Ricardo), Silva (Carlos Santos), Sócrates
(José), Veiga (José) e Vicente
(Manuel). [Nota relevantíssima: este rol nada tem a ver com as “embalagens prateadas” nem com os “gongos dourados” do paleio figurado do ponto 1. desta crónica. Cuidado com isso, que não tenho dinheiro para
prestidigitadores da vara.] Só que,
assim de fulminante repente qual trombose terminal, zás! e zinga! – a
Agricultura outra vez.
5. Sim. Ela toda. Foi
quando lia o item relativo ao
Granadeiro. O Granadeiro, sim, que terá preferido enriquecer a ser Henrique.
Foi na pág.ª 7: “[…] Ricardo
Salgado (…) classificou Henrique Granadeiro como um dos grandes sábios
portugueses na área agrícola.”
É que nem para mais nem por menos: Grande.
Sábio. E agrícola. Chiça! Quem? O Henrique? Parece que sim. Parece que sumo
mestre de herdades de comportas, fábricas de arrozes, herdades vinícolas,
marcas de vinhos capazes de vales de ricos homens e de tapadas de barões. Tudo
coisas, hoje, de arresto judicial, infelizmente, mas parece que antes de
cornucópica, ou pandórica, maravilha. Fiquei de boca artilhada na quarta vogal.
Então e o meu Virgílio ganadeiro ao pé deste Granadeiro épico também? Que
desgraçado cotejo me o decepava ali cerce? Calma. Lembrei-me a tempíssimo do
resgate. Bucólica Primeira, ali onde,
ao pastor Títiro, o colega Melibeu fala pela vez segunda: “Não te invejo, me espanto, pois que tudo/pelo campo é desordem. De que
modo!/Eu próprio, já doente, a estas cabras/empurro para a frente e à que tu
vês/como custa puxá-la, pois que gémeos/pariu por uma moita e aos dois
coitados/os teve de deixar em pedregulhos,/ó perdida esperança do rebanho!”.
6. Sim. Perdida. Digo:
a esperança. O rebanho soma, que se não some, e segue, que de borla curral lhe
damos. Até trânsito em (jul)gado. Diz a abelhinha.
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