Crónica à luz-roxa
Vejo
mais pessoas a pé do que de pé. Curto e grosso: a pé, os do embuste
anti-republicano de Fátima; de pé, as pessoas que (ainda) comemoram o 25 de
Abril e o 1.º de Maio.
Por
essas estradas, pirilampos bípedes de coletinho fluorescente: por essas praças,
homens e mulheres livres por conta própria. Talvez sejam dois mundos
irreconciliáveis. O mais certo é que o sejam de facto. Já me importei mais com
isso. Já cheguei, até, a indignar-me com isso. Felizmente, os anos acumulados
tornaram-me mais simples e mais bruto. Tenho repentes de ferocidade incendiária
que um copito de branco fresco apaga sem grande esforço. Na base do que V.
digo, está isto de eu vir do funeral de um Amigo. Aos 58 anos, o Tónio foi para
nenhures. Daqui a uns tempos, o canteiro dos mármores resumi-lo-á a um nome
entre duas datas. Pronto.
Na
volta, vim impregnado da inútil revolta do costume. Entre gares rodoviárias,
fui inútil e triste como uma biblioteca encerrada. As marcas quilométricas da
auto-estrada sucediam-se sem fadiga, estúpidas, inocentes e branquinhas à
maneira de cordeiros da Páscoa. Não pude ler. Não consegui escrever. Fui
assistindo aos eucaliptos velocíssimos da vidraça. O vento que neles dava era o
mesmo que me varre as ideias e as atitudes positivas. Senti-me, naturalmente,
tramado: tenho mais coração do que cabeça. Para a cabeça, ainda há uns
paliativos. Para o coração é que não há remédio.
E
lá a minha terra, como estava a minha terra? Mais cansada, pareceu-me. O meu
envelhecimento projectava-se nela como uma espécie de luz-roxa, dessa que
antigamente, nas matinées dos “clúbios” recreativos dos pobres, punham
os dentes e as fibras sintéticas da roupa a brilhar no escuro. Troquei com essa
minha gente as palavras costumeiras. Alguma dessa minha gente é da classe “a
pé”. Outra (minoritária, claro) é gente “de pé”. Não sei se me faço entender.
Gosto dela toda, para bem dos meus pecados.
Lá
deixámos o Tónio sufocado de flores de celofane. Fazia um calor mortífero. Lá
fomos ao copito de branco fresco. Foi até ser meio-dia. Depois, cada qual foi
para casa, fiquei eu sozinho no largo, dono tão-só de uma sombra vertical e
implacável de toldo sem mesa nem cadeiras por baixo. A incerteza tomou conta de
mim sem resistência. O branco fresco a sós é um bocadito pró triste. Um
quase-terror assolou-me: “E se deixei de
saber ler? E se nunca mais conseguir escrever?”
Pelos
vistos, não aconteceu. Está um dia bonito, nesse mundo a que às vezes pertenço.
Encerrei-me em casa, estores corridos contra a reverberação implacável de Maio.
A realidade funciona sem meu concurso. Olha, telefona-me agora mesmo um dos
meus Amigos ainda vivos. Tesouro, para mim. Dizemos chalaças. Dou por mim a
rir-me como um chimpanzé num bananal.
Mas
ai, Tónio. Ai, António Alves dos Santos (1958-2017).
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