Gramática vadia
Circunstâncias
minhas concatenam-se de quando em vez de modo tal, que me surpreendo vogando
em, ou por, uma espécie de extratempo da lei da gravidade liberto. Não é
fenómeno feio nem bonito – é só o que é: tropelias da serotonina na noz cerebral
que trago enroscada no estojo do casco craniano.
Desta
feita, achei-me em trânsito pedestre por ruas de uma Cidade de cuja existência
eu não dispunha já de provas incontestáveis. Era de manhã ou de noite? Para
melhor literatura, é preferível dizer que não sei. Era o que era: da jornada e
do périplo, a própria cronologia mistificada pela autoridade da solidão que se
me agarrava à roupa como um cheiro cego.
A
vendedeira de tremoços & pevides estava já abancada ao lado dextro da
velhíssima catedral onde dizem que fui baptizado, logo eu, filho que fui de
pais ateus que, fazendo-me baptizar, cortavam ao regime quaisquer suspeições de
heresia foice-e-martelo. Caixotes de livros em segunda-mão liam já também o
chão do quiosque: voluminhos ingénuos que li no século último de um milénio que
não volta. Além, era o estúdio fotográfico em cuja montra de há quarenta anos
os donos expuseram, acreditai-me, a fotografia do cadáver do próprio filho,
vítima de uma das primeiras doses mortais de heroína das primícias pós-25 de
Abril. Fizeram-no como alerta pungentíssimo aos outros pais & mães da
Cidade. Resultou pouquíssimo.
Vielas
esconsas e húmidas como porões de caravelas aceitaram-me os passos. A
fragrância a mijo de gato chegava a ser comovente, fazendo-me arder de lágrimas
piscas os olhos pitosgas. Fantasmas prostibulares em forma de mulheres
septuagenárias fumavam em assentamento no degrau de pedra das portas anãs de
janêlo como nas fotografias do Gageiro. Uma frutaria salvava de cor &
perfume o instante. Com um surdo e muito simples bater de asas, alcandorei-me à
varanda do Rio, esse todo & mesmo que há oitenta mil anos os meus Irmãos
nadaram, sem mazelas, sem medo e sem futuro, vestidos tão-só de uma nudez desprovida
de pecado.
Dizem
que naquele hotel dormiu uma noite o imperador do Japão. Ainda não confirmei a
validade de tal asserção. É, de gloriosa arquitectura, o velho e formoso
Astória, cujo A desenha e ensina em
grande estilo, a bronze na parede, o número da porta: 21. Passei, como tudo
passa.
Acre
e capitosa, uma fumarada de sardinhas no carvão instaurava a neblina de Londres
entre o Bragança e o Oslo, mais precisamente no largo que liga o Café Angola ao
meu livro de 2008, uma estapafurdice paginada a que chamei Terminação do Anjo e que felizmente ninguém comprou e muito menos
leu.
Por
essas mediações, fui tomado pela incerteza. Salvei-me caçando o primeiro
autocarro. Tive de comprar dois bilhetes: um para o coração, para a cabeça
outro. A memória viajou de borla.
Desci
na paragem do viaduto que gemina a fonte luminosa ao bairro cuja hierarquia
onomástica tombou de marechal a general: Carmona para Norton de Matos. O corpo
pediu-me cafeína e engaço prensado. Satisfi-lo a preceito. Rodando o cálice nos
três dedos do lápis, eu já então me apercebera de apenas poder existir dentro
da crónica. Não opus resistência a tal gramática.
Aqui
estou. Não sei é onde. Muito menos quando.
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