É perguntar ao
David, talvez
Tenho
sonhado mais, ultimamente. Não são pesadelos nem delícias. São farrapos de
lucidez entremeada de desconcerto. Algumas pessoas, apesar de mortas,
passeiam-se-me pelas arcadas do inconsciente como se aquilo de terem vivido
tivesse afinal solução – e continuidade. Outras, apesar de vivas, parecem não
crer que as vivo, que as tenho em conta, as considero já tão santas como se me
houvessem morrido.
Não
sei. Desperto a meio caminho de nenhures, provindo de lado nenhum. De volta, a
consciência não me traz especial reconcertação para com a realidade. Vogo.
Estendo a garra mole para a cabeceira, onde os óculos cegaram toda a noite. Os
joelhos rangem como dobradiças de mosteiro. Uma orelha quente, outra gelada. A
bexiga, despontando costuras. A espinha, retesa qual cordame náutico. Iça-me a
grua do tem-de-ser. Viro a página do lençol com brusquidão de leitor ingrato. O
elástico da cinta do pijama já nem para cingir réstias de alhos serve. Uma
pantufa, fiel, escolhe o pé errado. A outra migrou para o azimute mais inalcançável
do porão da cama. Rumo à latrina, coxeio à maneira de pombo com noventa quilos.
À passagem, o espelho denuncia-me o cabelo em imitação oleosa do David Bowie. A
pança faz-me boneco-da-Michelin. Alivio-me em puro aparato filosófico: tudo o
que começa por torrente a jacto, sem remédio acaba às pinguinhas.
Na
banca do lavatório, as coisitas da mulher da casa pontuam o texto da ausência
dela: o secador, a escova, a etérea transparência nocturna amarfanhada no
cestinho das sedas, a tesourita das sobrancelhas, os mil truques mínimos que
escoram a descomunal beleza dela.
Rumo
à cozinha, bocejo cavernames de Mira de Aire. Copo de água para lavar a adega.
Cafeteira, caneca amarela, micro-ondas. Sala. Notícias, primeiro cigarro.
Palhaçada das presidenciais em França. Grunho: Eliseu dos Recreios (tomar
nota do trocadilho para crónica). Atentado não sei onde. Palhaçada da
autocanonização geral: refugiados, Papa, de novo na moda os sem-abrigo de
Lisboa e o Santana na Misericórdia, Marcelo por todo o lado como os buracos da
estrada e as chaminés inúteis das fábricas extintas e a certeza de morrer um
dia. Os crimes da, perdão, na CMTV. O próximo Sporting-Benfica a render
dezasseis horas por dia desde 28 de Maio de 1926. Desligo à bruta. O café
arrefeceu. Micro-ondas. Segundo cigarro. Esquentador. Polibã. Muito melhor.
Volto a ser um belo homem. Saio do vapor como um dom-sebastião sem feridas a
mais. Prazer delicado da roupa interior lavada de fresco. Camisa fina como
segunda pele. Fidelidade do cinto de cabedal no cós. Sapatos leves de
busca-rimas. Um meio-dedo de fragrância nas almofadinhas da orelheira. Chapéu
de palerma como os há muitos. Pronto.
Já
na rua, disponível todo à maravilha exótica da aventura urbana – mas cuidado
nas passadeiras. Todo aberto ao encontro de poetas, arquitectos, ecologistas,
velejadores olímpicos – mas só os velhos de sempre na pastelaria do costume.
Ainda todo crente no ser hoje o dia de dar começo ao Romance Português do
Século – mas só o Record de ontem
para romancear o Portugal secular. Remédio infalível de cónego velho: ir tomar
um doce à choupana atrás dos plátanos, onde o rio espuma as aurículas aos
melancólicos. Não para falar com alguém – mas para ter alguém a quem ouvir
falar (tomar nota dos ditos para crónica).
Décimo-segundo cigarro. O telemóvel chamando. Atendo. Engano de lá. Como
sempre. Comprar-me-ei alguma vez um aparelho que dê o meu número correcto a
alguém que se não engane tanto comigo? Alguém que me creia vivo, me tenha em
conta e me considere santo à guisa de um desses mortos de sonho como, sei lá, o
David Bowie?
Adormeço.
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