05/01/2017

NÃO QUEIRAIS QUE CONVOSCO SONHE - in Rosário Breve nº 487 - in O RIBATEJO de 5 de Janeiro de 2017 - www.oribatejo.pt

Não queirais que convosco sonhe


1 Sou tido entre os meus Amigos, com justiça aliás, por incurável caturra pessimista. Não enjeito o apodo. O esfarelar dos anos tem-me agravado certa misantropia que acaba escorrendo para o que escrev(iv)o. Ontem à noite, por exemplo.

2 Ontem à noite, sozinho na sala, certo canal de televisão de popularucho sucesso escalpelizava ad nauseam (mais) um crime sórdido que metia o que é costume: personagens-faca & personagens-alguidar, violência doméstica etc. etc. Não era uma reportagem sobre factos – era, sim, um (hor)ror de diz-que-disse-parece-me-que-foi-o-que-ouvi-dizer. A aldeiazinha do cenário cheirava a cães magros à chuva. Tractores rebentados esbeiçando os córregos, milharais ferrugentos, poços a céu-aberto, taberna em dia de festa por andar por cá aquela televisão que “fala como nós”, velhas luzidias de óleo-de-fritar espalmando nos peitos bentinhos prantos digitais & criançolas completamente alienadas pela câmara histrionando momices emplastras nas costas dos entrevistados. Tudo, enfim, de uma portugalice irremediável, pobrete, alegrete, de uma frialdade de sacristia esfregada a lixívia pela perpétua irmã falsa do senhor padre.

3 E no entanto nada disto tinha nada de ser assim. Deveria tudo ser o avesso do que é. A minha geração, iluminada à saída da Escola Primária por aquilo dos cravos, só podia embarcar, com ligeireza mas sem leviandade, no culto da liberdade informada, no uso do livro, no pensar (sem penar) pela própria cabeça. Beneficiámos, afinal, da extinção de um regime obscurantista, armado, sentinela, desumano. O mesmo regime cujo sistema escolar publicava sem qualquer pudor coisas deste género:
“A população escolar pode e deve dividir-se em cinco grupos, a saber: Ineducáveis 8%; Normais estúpidos 15%; Inteligência média 60%; Inteligência superior 15%; Notáveis 2%”. Sem tirar nem pôr, era assim que eles impunham que fosse. Ora, quatro décadas depois do 25 de Abril temos todos a obrigação (até moral, até patriótica) de ser, pelo-menos-pelo-menos, médios. Nem Einsteins ao pontapé, nem galinhas bípedes. Mas a realidade é comandada por essa caixa-que-mudou-o-mundo – para pior. É ou não é? É.

4 Entretanto, fui visitado por uma outra espécie de notícia. Da minha terra original, informam-me que morreu o senhor Joaquim Pratas. Era um nonagenário de quem todos gostávamos muito. Tínhamos todos a semi-secreta esperança de lhe festejar o centenário. Alto como nem era costume entre os homens da geração dele, tinha sido nimbado pelos anos de uma espécie de aura litográfica de árvore antiga. Pai de uma dúzia de rapazes & raparigas (tudo gente decentíssima, garanto-vo-lo sem logro), levou-no-lo o Ano Novo. E agora digo-vos isto: eu sonhara com ele na véspera. Aliás: não sei se foi sonho, se aquela afiguração semiconsciente de pré-adormecido. Não voltei a pensar nele até me darem a notícia terminal, aquela que tudo salda, resolve, conta, arquiva.
O que daqui retiro, Amigos, é mauzito como a minha literatura: sonhar pode ser mortífero. Se eu fosse a Vós, teria cuidado comigo.



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Canzoada Assaltante