Não queirais que
convosco sonhe
1 Sou tido entre os
meus Amigos, com justiça aliás, por incurável caturra pessimista. Não enjeito o
apodo. O esfarelar dos anos tem-me agravado certa misantropia que acaba
escorrendo para o que escrev(iv)o. Ontem à noite, por exemplo.
2 Ontem à noite,
sozinho na sala, certo canal de televisão de popularucho sucesso escalpelizava ad nauseam (mais) um crime sórdido que
metia o que é costume: personagens-faca & personagens-alguidar, violência
doméstica etc. etc. Não era uma reportagem sobre factos – era, sim, um (hor)ror
de diz-que-disse-parece-me-que-foi-o-que-ouvi-dizer.
A aldeiazinha do cenário cheirava a cães magros à chuva. Tractores rebentados
esbeiçando os córregos, milharais ferrugentos, poços a céu-aberto, taberna em
dia de festa por andar por cá aquela televisão que “fala como nós”, velhas luzidias
de óleo-de-fritar espalmando nos peitos bentinhos prantos digitais &
criançolas completamente alienadas pela câmara histrionando momices emplastras
nas costas dos entrevistados. Tudo, enfim, de uma portugalice irremediável, pobrete, alegrete, de uma frialdade de
sacristia esfregada a lixívia pela perpétua irmã falsa do senhor padre.
3 E no entanto nada
disto tinha nada de ser assim. Deveria tudo ser o avesso do que é. A minha
geração, iluminada à saída da Escola Primária por aquilo dos cravos, só podia
embarcar, com ligeireza mas sem leviandade, no culto da liberdade informada, no
uso do livro, no pensar (sem penar) pela própria cabeça. Beneficiámos, afinal,
da extinção de um regime obscurantista, armado, sentinela, desumano. O mesmo
regime cujo sistema escolar publicava sem qualquer pudor coisas deste género:
“A população
escolar pode e deve dividir-se em cinco grupos, a saber: Ineducáveis 8%;
Normais estúpidos 15%; Inteligência média 60%; Inteligência superior 15%;
Notáveis 2%”.
Sem tirar nem pôr, era assim que eles
impunham que fosse. Ora, quatro décadas depois do 25 de Abril temos todos a obrigação
(até moral, até patriótica) de ser, pelo-menos-pelo-menos, médios. Nem Einsteins ao pontapé, nem galinhas bípedes. Mas a
realidade é comandada por essa caixa-que-mudou-o-mundo – para pior. É ou não é?
É.
4 Entretanto, fui
visitado por uma outra espécie de notícia. Da minha terra original, informam-me
que morreu o senhor Joaquim Pratas. Era um nonagenário de quem todos gostávamos
muito. Tínhamos todos a semi-secreta esperança de lhe festejar o centenário.
Alto como nem era costume entre os homens da geração dele, tinha sido nimbado
pelos anos de uma espécie de aura litográfica de árvore antiga. Pai de uma
dúzia de rapazes & raparigas (tudo gente decentíssima, garanto-vo-lo sem logro),
levou-no-lo o Ano Novo. E agora digo-vos isto: eu sonhara com ele na véspera.
Aliás: não sei se foi sonho, se aquela afiguração semiconsciente de pré-adormecido.
Não voltei a pensar nele até me darem a notícia terminal, aquela que tudo
salda, resolve, conta, arquiva.
O
que daqui retiro, Amigos, é mauzito como a minha literatura: sonhar pode ser
mortífero. Se eu fosse a Vós, teria cuidado comigo.
Sem comentários:
Enviar um comentário