Simplesmente Maria
O
título desta crónica é copiado.
Era
como se chamava uma fotonovela (tenebrosa como todas as foto, rádio e
telenovelas) que na minha infância enfraqueceu as coronárias a muita
costureira. Directamente provinda da pobreza, a Maria em questão chegava à
cidade montada num burrinho delicodoce, alcançando, depois de peripécias mil ou
novecentas, o clímax e o casamento. Não m’alembra o resto da história, pelo que
passo a especular.
Tudo
acaba quando acaba em casamento. Ou não? Dissestes vós alguma coisa? Não? Posso
continuar? Enfim, agora que o meu outono particular começa amarelecendo até as
folhas dos cadernos onde lapijo estas histórias irremediáveis, dou por mim
pensando em Maria. Deve ser ela, hoje, mulher dos seus cinquenta e muitos. O mais
certo é ter-se separado do engenheiro ou médico ou arquitecto ou advogado de
sonho com quem, então, aliançou suspiros. Deve ter-se fartado das patilhas
dele, do apartamento em Santo António dos Cavaleiros, das pontas arrefecidas de
Ritz a boiar no laguinho triste da
sanita. Talvez ele lhe tenha prometido um futuro de manteiga que com os anos se
volveu margarina, simplesmente margarina. Quase aposto que ele teve e manteve
amantes enquanto ela se aborrecia no cabeleireiro a erguer vasos de cabelo à
senhora Knorr e à senhora Maggie e à senhora Vaqueiro e à senhora Dabri e à
senhora Tokalon e à senhora Creme Byly. Mas também pode ser que, aos cinquenta
e tal, se tenha ela arranjado com um rapazinho directamente provindo da pobreza
para tentar na cidade uma carreira de cantor pleibeque ou coisa assim. (O bom de escrever é que tudo pode ser.)
O
futuro torna-se, com o passar dos anos, menor do que o passado, essa é que é
essa. O passado é o sítio mental onde as donzelas pobres, escarranchadas em
burrinhos, continuam chegando à cidade pirilampada de reclamos luminosos na
noite cosmopolita. E é também, bem mais bastas vezes do que gostaria, o meu
sítio. Nele busco, com a ponta do lápis, as referências mais ínclitas, os mais
egrégios avós, os heróis de um mar a
que basta somar ia para dar Maria.
Maria
que, sozinha de novo, liquida o salão de cabeleireira e regressa, não de
burrinho mas de Clio, às berças
natais. A taberna tornou-se snack, o
padre já não é Sacramento mas Eliseu, a primária fechou por falta de crianças,
o outeiro onde as cabras pastavam com lenta filosofia está agora crivado de
rápidas maisons fechadas onze meses
ao ano, a avó de Maria simplesmente morreu de ter noventa anos há mais de
trinta, os cães já não comem broa e o pai de Maria, que lhe perdoou a fuga,
lacrimeja pingentes de velho comovido à aparição da filha, cujo telemóvel
começa a tocar quando ela o abraça.
–
Estou, sim pois, é assim, agora já não
dá, não, se voltar é porque acabaste de vez com essa sirigaita, tu é que sabes,
tu é que sabes, só tenho de saber que acabas de vez, é assim, isso e as beatas
no laguinho triste da sanita, caso contrário não dá, Bernardo. Bernardo
promete que dá.
O
passado acaba sempre bem.
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