O cão do Café
Pagelou
Passou-se
esta há quase trinta anos. Era no Café Pagelou, ali ao centro da vetusta &
formosa Lousã da minha vida moça. Para além do atendimento de qualidade, mais
ainda do que pela sua excelente localização, o estabelecimento atraía-me os
favores cafeínos por causa do cão da casa. Sim, por causa do cão da casa.
O
número dele fazia sorrir toda a gente. O meu sentimento, porém, era dúbio, era
equívoco, era contraditório, era paradoxal. Também eu sorria, é verdade, mas ao
mesmo tempo aquilo entristecia-me. Porquê?
Porque
o cachorro era viciado em açúcar. O pessoal mandava vir a bica, sacudia a
saqueta – e zumba!: lá o tinha à perna, de esbugalhados olhos vítreos,
mesmerizados pela doce droga, sacudindo o rabiosque a 180 km/hora. Se lhe davam
o resto da saqueta, ele era virtuosíssimo no segurá-la com ambas as mãozitas
dianteiras, estraçalhando-a sem apelo & com agravo. E então, lambia-lhe os
dentros como um possesso. Sim, aquilo gerava sorrisos certos no derredor da
freguesia. Mas, já vo-lo disse, também tinha o condão de entristurar-me. É que
os cães não metabolizam o açúcar. São capazes de muitas coisas de alto mérito –
mas da metabolização do açúcar, não são.
Eu sabia-o, portanto, condenado a um destino atroz: o da cegueira diabética. As
três décadas volveram-se cinza.
Deixei
há muito de habitar na Lousã de boa memória que revisito com gosto sempre que
posso e/ou me lá chamam. O cãozito do Pagelou há muito terá ascendido ao céu
dos quadrúpedes. Oxalá que, nesse merecido Paraíso, nem a pulga lhe resida
atrás da orelha, nem o açúcar o cegue. Pode até ser que alguém, esta crónica
lendo, se recorde do animal. Ou que, maravilha!, se lembre de como lhe chamavam.
Por mim, sou tão-só capaz de vos garantir, em boa-fé & de boa-mente, a
veracidade do exposto.
O
titular cachorrito há-de perdoar-me, quero crer, que a lembrança dele seja por
mim revisitada a pretexto alegórico. Este aqui: que outrora coisa relativa à
Lousã se me insurja. E ela é esta – onde o cão é viciado em açúcar, e por causa
disso cego, é a gente lousanense (e não só) viciada em amargura: pois só um
cego não vê o que (des)fizeram à linha ferroviária que da Lousã tem nome,
embora até Serpins chegasse.
Perdoado
estás e ficas, cãozito, à face da voluntária cegueira tua não voluntária.
Não
me perdoo porém eu a mim, ou a Vós por mim, por, cada vez que de novo arribo à
honesta, formosa, vetusta e perpétua Lousã, ouvir ladrar tão pouco à falta do
roubo de tanto açúcar.
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