12/05/2016

CONTRA OS CANHÕES n.º 2 - in Quinzenário TREVIM de 12 de Maio de 2016

O cão do Café Pagelou

Passou-se esta há quase trinta anos. Era no Café Pagelou, ali ao centro da vetusta & formosa Lousã da minha vida moça. Para além do atendimento de qualidade, mais ainda do que pela sua excelente localização, o estabelecimento atraía-me os favores cafeínos por causa do cão da casa. Sim, por causa do cão da casa.
O número dele fazia sorrir toda a gente. O meu sentimento, porém, era dúbio, era equívoco, era contraditório, era paradoxal. Também eu sorria, é verdade, mas ao mesmo tempo aquilo entristecia-me. Porquê?
Porque o cachorro era viciado em açúcar. O pessoal mandava vir a bica, sacudia a saqueta – e zumba!: lá o tinha à perna, de esbugalhados olhos vítreos, mesmerizados pela doce droga, sacudindo o rabiosque a 180 km/hora. Se lhe davam o resto da saqueta, ele era virtuosíssimo no segurá-la com ambas as mãozitas dianteiras, estraçalhando-a sem apelo & com agravo. E então, lambia-lhe os dentros como um possesso. Sim, aquilo gerava sorrisos certos no derredor da freguesia. Mas, já vo-lo disse, também tinha o condão de entristurar-me. É que os cães não metabolizam o açúcar. São capazes de muitas coisas de alto mérito – mas da metabolização do açúcar,  não são. Eu sabia-o, portanto, condenado a um destino atroz: o da cegueira diabética. As três décadas volveram-se cinza.
Deixei há muito de habitar na Lousã de boa memória que revisito com gosto sempre que posso e/ou me lá chamam. O cãozito do Pagelou há muito terá ascendido ao céu dos quadrúpedes. Oxalá que, nesse merecido Paraíso, nem a pulga lhe resida atrás da orelha, nem o açúcar o cegue. Pode até ser que alguém, esta crónica lendo, se recorde do animal. Ou que, maravilha!, se lembre de como lhe chamavam. Por mim, sou tão-só capaz de vos garantir, em boa-fé & de boa-mente, a veracidade do exposto.
O titular cachorrito há-de perdoar-me, quero crer, que a lembrança dele seja por mim revisitada a pretexto alegórico. Este aqui: que outrora coisa relativa à Lousã se me insurja. E ela é esta – onde o cão é viciado em açúcar, e por causa disso cego, é a gente lousanense (e não só) viciada em amargura: pois só um cego não vê o que (des)fizeram à linha ferroviária que da Lousã tem nome, embora até Serpins chegasse.
Perdoado estás e ficas, cãozito, à face da voluntária cegueira tua não voluntária.
Não me perdoo porém eu a mim, ou a Vós por mim, por, cada vez que de novo arribo à honesta, formosa, vetusta e perpétua Lousã, ouvir ladrar tão pouco à falta do roubo de tanto açúcar. 

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Canzoada Assaltante