(…) dum’ assentada/que eu pago já
Nos alvores
do ano 1985 d.C., fui recipiente do desastroso e dolorosíssimo apodrecimento de
um incisivo. A violenta e virulenta catástrofe dentária abcess’intumesceu-me a
metade esquerda da boca de tal maneira, que até o olho do mesmo hemilado da
cara se me semicerrou em presidência pitosga da abóbora-pouco-menina que o
espelho me retornava e reflectia em ros’amarelo-pus. A fio, dias moles
duramente penei. Inabilitado de rua civil (quanto menos não fosse, por razão de
estética mínima), repugnei de suores-frios o pijama de solteiro, envelheci de
chinelos os tacos do quarto singelo, canjengalinhei fastios famélicos sem
retorno, adoeci as cortinas de tule da janela glauca e desesperei sem ilusões &
com borato morno a degradação irreversível da minha cremalheira
maxilamandibular.
Até então
& desde então, houvera & houve Janeiros melhores. Desse mau januário
85/XX, não me esqueço. Todavia & naturalmente, o resto do ano foi também de
coisas boas & de coisas nem-por-isso. Antes delas, porém, permiti-me V. que
repesque pérolas de outros Oitenta&Cincos. (Faço-o via a História de Portugal em Datas, Círculo
de Leitores, 1994.)
No 85/XII,
nascia Évora enquanto diocese cristã (a consagrar 19 anos depois) e morria o
cristão D. Afonso Henriques, rex primus
de Portugal, sucedendo-lhe no ceptro o seu primogénito Sancho.
Em 1285,
houve Cortes em Lisboa. Danada e furibunda, a nobreza de então ladrava em
acirrado desfavor das Inquirições,
que lhes tolhiam as imunidades senhoriais. Deve ter sido feio: Filho (infante
D. Afonso) contra Pai (D. Dinis). Veio a Rainha Santa com pão & rosas – e
pronto: tudo pobre e tudo amigo na mesma.
No 85 da
centúria XIV, muita acção também – as Cortes são em Coimbra. O jurista João das
Regras diz, a coisa faz-se: em detrimento de outros (a menina Beatriz e os
rapazes de D. Pedro I, João e Dinis), é aclamado regiamente o Mestre de Avis,
também João e também Dom e também Primeiro. E ainda: damos porrada aos
Castelhanos em Aljubarrota, em Trancoso e em Valverde.
Em 1485,
Diogo Cão retorna à costa africana, logrando atingir a Serra Parda. Os sabões
da caboverdeana Ilha de Santiago são concedidos ao senhor daquele arquipélago,
um tal Rodrigo Afonso. E o por assim dizer nosso D. João II trata de aliar-se
ao oitavo dos Carlos de França.
Os dígitos
85 do século seguinte são já espanhóis por cá. Manda há cinco anos Filipe II de
lá, I aqui. Nota artística-imperial: é proibido o comércio com a inimiga &
arquirrival Holanda. Os anos de Seiscentos são os do grande e glorioso
plumitivo & sermonista padre António Vieira. O ano 85/XVII propriamente
dito é o de vinda a lume de uma obra importante: a Arte de Criar Bem os Filhos na Idade da Puerícia, de Alexandre de
Gusmão.
Cem anos
& muita solidão depois, há casórios realengos entre as Casas Ibéricas: os
infantes tugas João e Mariana Vitória
enlaçam-se, respectivamente, com os castelões
Carlota Joaquina e Gabriel de Bourbon. É também o ano da morte da célebre
amante de D. João V, a pouco casta Madre Paula.
Antefinalmente,
chegados somos ao século do gigante Eça. Há 40 anos é ele nascido (em 1845, na
Póvoa de Varzim, de amor não matrimoniado ainda entre um senhor juiz e uma
senhora ajuizada) quando um tal Bernardino Machado, futuro Presidente da futura
República, cria na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra as
cadeiras de Antropologia, Paleontologia Humana e Arqueologia Pré-Histórica.
Noutro plano, um Acto Adicional à Carta Constitucional visava a progressiva
democratização do sistema político: menos Rei e nenhuma hereditariedade no
pariato camarário. Já o Partido Progressista (de figuras como Oliveira Martins,
António Cândido e Lobo de Ávila, entusiastas no encómio ao cesarista modelo alemão
à la Bismarck) preconizava, por seu
lado, o projecto Vida Nova: mais Rei
e mais Executivo.
No triste
século XX do nosso nascimento físico, o ano 85 é de aluviões contraditórios: em
Janeiro, aquilo mau do meu dente; em Fevereiro (8), morte do Poeta José Gomes
Ferreira; em Março (29), inauguração da Mesquita de Lisboa para os (talvez) 15
mil seguidores locais de Mafoma; a 10 de Abril, debate na AR sobre a adesão
sim-ou-não à CEE; a 19 de Maio, dá-se, na Figueira da Foz, a Cavacada da revisão do carro; a 15 de Junho, Tomar acolhe a 1.ª Convenção Nacional
do novel PRD de inspiração & tutela eanistas; a 12 de Julho, Eanes dissolve
presidencialmente a AR e fixa as Legislativas para 6 de Outubro seguinte; a 11
de Agosto, chegada das supostas relíquias de D. Nuno Álvares Pereira ao
lisbonense Convento do Carmo, no âmbito comemorativo do hexacentenário da
Batalha de Aljubarrota; a 5 de Setembro, enquanto o PS atribui ao PSD a
paternidade da crise política, os meus Irmãos Fernando & Jorge geminam
entre si o 31.º aniversário natalício (último do Jorge, mas não o sabíamos
então); a 16 de Outubro, as ossadas de uma multidão chamada Fernando Pessoa são
trasladadas para os Jerónimos; a 6 de Novembro, Cavaco é indigitado por Eanes
para formar Governo; e dois dias depois chega às bancas o número primeiro do
jornal O Ribatejo. Um tridecénio
depois, o dito semanário é o meu avesso: nunca lhe doeram os dentes, nem jamais
trincou a língua.
Venham mais
trinta (…)
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