Missão Jorge
Uma das (poucas)
missões sérias que tenho, sigo e persigo na vida é a de manter vivo o meu Irmão
Jorge. Não é tarefa fácil: vai para trinta anos que morreu.
Como faço? –
querereis, talvez, saber Vós.
Faço assim:
Onde
a tua sombra refrescou o chão, acendo a vela do olhar.
Àquele
e àquela a quem o teu nome lembra ainda um rosto vivo & bonito, saúdo pelo
próprio nome no rosto mesmo.
Se
uma das tuas canções favoritas me acode aos pavilhões auditivos, cantarolo-a
com a tua voz.
Se
algo é referido como Património Mundial
da Humanidade, penso sempre que é do teu Corpo que falam.
Se
vêm com aquilo do Objecto Voador Não
Identificado, eu identifico-o logo como sendo a tua Mente.
Os
cães vadios das ruas tresandam à tua bondade e à tua solidão, meu malogrado Irmão.
Na
época das andorinhas, Maio não é o mês da tua morte – nem o do meu nascimento.
É
um bocado chato da tua parte fazeres-te de nove-horas, agora que são as dez para
sempre.
O
Pai declinou a olhos nus com o teu passamento: era um pássaro quebrado como um
galho. Não durou oito anos, esse pássaro nosso progenitor.
A
Mãe deu mais luta. A Mãe deu sempre muita luta. Luta & luto. Durou quase um
quarto-de-século sem ti. Ou contigo, lá bem à maneira só dela, essa campeã de
filhos, essa vencedora nata.
Passo
muitas vezes à porta do teu quarto-casa terminal: fecharam a janela ao n.º 210,
receio que lá dentro as trevas te impeçam o gesto branco, a fala clara.
The Rolling Stones ainda andam por
aí. (Percebo que isto te faz sorrir. A mim, não – deverias ter-lhes seguido o
exemplo.)
Outras
famílias como a nossa perderam também seus Jorges – a família Conceição do teu
Tó, por exemplo. (Arrependo-me e penitencio-me: não deveria ter-te contado
isto.)
O
Botânico continua frondoso & formoso.
O
Mondego continua de cobalto vivo: uma tira de Céu.
A
tua Filha Daniela é uma mulher linda como uma manhã de sol acordando em vidro
não-cortante um campo verde-ferrete.
Os
Irmãos sobreviventes fazemos pela vida: endureceu-nos a todos, a manhã de 23 de
Maio de 1986. Do teu gémeo Fernando, nem falo.
Repara:
tu em Maio, o Pai em Abril, a Mãe em Março – o Tempo desce.
1986.
1994. 2011.
Sim,
passei hoje pela tua rua Antero de Quental, alimentei o pombal à tua porta, a
altaneira Torre da Universidade já não cabreja a estudantada como antigamente,
mas também a verdade é que tudo me sabe a antigamente quando entristeço de
arroz & pombas à tua porta, à tua janela fechada.
És
difícil de manter vivo. Uma pessoa sobrevive por egoísmo. Tenho livros &
discos que te dar e de que te falar, dá-me uma trabalheira dos mil-diabos andar
com este sacão repleto de belezas escritas & cantadas, pareço a Liginha com
o saco dos brinquedos a caminho da praia, pá.
A
minha Filha Leonor formou-se em Composição Musical na quarta-feira, 22 de Julho
de 2015. Ela não faz (mas faz) ideia de quem sejas.
Eu
faço: És.
Não
deve ser fácil para ti, isto de ser.
Mas
És.
Tu
seres é o meu trabalho.
A
minha missão não impossível, Jorge Manuel Leite dos Santos Abrunheiro.