11/12/2014

Rosário Breve n.º 386 - in O RIBATEJO de 11 de Dezembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Verdades simples 

Não é com peditórios à caridadezinha que se resolve a pobreza infantil. É dando trabalho aos pais.
Esta é uma verdade simples, dessas evidências que não precisam, para que a elas se chegue e a partir delas a algum lado se vá, das prévias descoberta do fogo ou invenção da roda. A realidade tudo faz, porém, não apenas por contrariá-la, como por repeli-la. Uma espécie de bebedeira ubíqua, oblíqua e iníqua entorpece os mandadores da finança, esse um-por-cento inquilino de palacetes prostibulares a partir dos quais se congemina e põe em prática a miséria multitudinária dos restantes noventa-e-nove.  
As fortunas colossais podem, titularmente, mudar de nome. A miséria é sempre Zé que se chama. Todos temos sofrido e sassaricado o triste carnaval radiotelevisivo expositor de miseráveis delinquentes atulhados de ouro de repente apanhados de botija entalada nas beiças borradas de caviar. Percebo que seja humilhados que se sintam. Percebo. É por causa de outra verdade simples, daquelas antigas que a sabença popular crismou: “Vergonha não é roubar – é ser apanhado a roubar.” Bem asseverou o grande Balzac que toda a grande fortuna está fundamentada num crime. Ou em muitos. Angola que o diga. Qualquer paraíso-off-shore-of-course que o confirme. Nós que cavaquistãomente o reiteremos.
Os bombeiros põem por nós as mãos no fogo. Pois põem. Daí, que fazem os canalhas? Compram submarinos.
A água é de todos e não se nega a ninguém. Pois é e pois não. Daí, que fazem os pulhas? Privatizam-na.
As empresas de serviço, interesse e património públicos são de incontornável condição estruturante da sociedade. Pois são. Daí, que fazem os caniches? Põem-lhes olhos-de-bico e mandam-nas passar a falar em mandarim.
A Língua-Pátria é o mais seguro capital simbólico e identitário do Povo. Ah pois é. Daí, que fazem os académicos falsamente diplomados? Aplicam-lhe o simplex ortográfico e fazem dela uma babélica vozearia de casa-de-alterne fundada em Goiás com sucursais em tudo o que for foral lusitano.
Além de tudo isto, há os eufemismos aldrabões com que os burrocratas da má-fé maquilham a realidade. Por exemplo: chamar “requalificação” àquilo que é nu e cru despedimento. Ainda na semana passada ouvi isto de um requalificado, perdão, reconduzido no cargo.
Como Sócrates (por exemplo ele) foi primeiro-ministro entre 2005 e 2011, o mais curial é explicar-lhe estas e outras coisas como se ele tivesse seis anos. É outra verdade simples, aritmética no caso: 2011 menos 2005 igual a seis.
Verdades simples. Não quero chamar-lhes solenes. (Mas são-no.) Solenes, só as missas e os embirranços. Como não frequento as primeiras, é solenemente que pratico os últimos. É talvez por a minha criação datar da época em que a ignorância se envergonhava de si mesma. Hoje, não. Hoje, a ignorância é curricularmente obrigatória. É arrogante. É afoita. É atrevida. É insolente. É governante. Superiormente lúcido, o grande Pessoa referia-se à “sinceridade” como “prática anti-social”. Para crescer sem ser a pulso na carreira, sim. De gentinha a gentalha, o passo não é muito largo. Falo desse tipo de gente que tem quatro pés e nenhuma mão – se não na anatomia, decerto na mente. (Que mente, mente sempre.) Subitânea, por súbita e instantânea; soturna, por solipsista e nocturna – a récua de bestas que nos espezinha e estruma a vida não tem de ser encarada e zurzida senão a chicote judicial legal e legitimamente brandido. No fundo como à flor, trata-se, quando e quanto não mais, da derradeira maneira de nos devolvermos, a nós mesmos, uma cara de gente, em vez de barbearmos ao espelho uma espasmódica carranca de chafariz mais própria de sofredor das tripas do que de portador de humano semblante.
Entretanto, Dezembro faz pela vida. Faz, não – vai à vida. Como à vida vão as 32 famílias dos recém-requalificados do Centro Distrital de Santarém da Segurança Social. Eu disse “Segurança Social”? Disse mal. Insegurança Associal é a verdade simples alternativa.
À caridadezinha, o menino-jesus medeia o burrinho e a vaquinha. Já o pagão pai-natal, de quem se não conhece nem mulher nem filhos, nos deve fazer concluir que o mais sensato ainda é irmos chamar Pai a outro.
Ou, como diria a botóxica Manuela Moura Guedes, anda uma pessoa a criar cães para isto.


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Canzoada Assaltante