Verdades simples
Não é com peditórios à caridadezinha que se resolve a pobreza infantil. É dando trabalho aos pais.
Esta é uma verdade simples, dessas evidências que não precisam, para que
a elas se chegue e a partir delas a algum lado se vá, das prévias descoberta do
fogo ou invenção da roda. A realidade tudo faz, porém, não apenas por
contrariá-la, como por repeli-la. Uma espécie de bebedeira ubíqua, oblíqua e iníqua
entorpece os mandadores da finança, esse um-por-cento inquilino de palacetes
prostibulares a partir dos quais se congemina e põe em prática a miséria
multitudinária dos restantes noventa-e-nove.
As fortunas colossais podem, titularmente, mudar de nome. A miséria é
sempre Zé que se chama. Todos temos sofrido e sassaricado o triste carnaval radiotelevisivo
expositor de miseráveis delinquentes atulhados de ouro de repente apanhados de
botija entalada nas beiças borradas de caviar. Percebo que seja humilhados que se sintam. Percebo. É por
causa de outra verdade simples, daquelas antigas que a sabença popular crismou: “Vergonha
não é roubar – é ser apanhado a roubar.” Bem asseverou o grande Balzac que toda a grande fortuna está fundamentada num
crime. Ou em muitos. Angola que o diga. Qualquer paraíso-off-shore-of-course que o confirme. Nós que cavaquistãomente o reiteremos.
Os bombeiros põem por nós as mãos no fogo. Pois põem. Daí, que fazem os
canalhas? Compram submarinos.
A água é de todos e não se nega a ninguém. Pois é e pois não. Daí, que
fazem os pulhas? Privatizam-na.
As empresas de serviço, interesse e património públicos são de
incontornável condição estruturante da sociedade. Pois são. Daí, que fazem os
caniches? Põem-lhes olhos-de-bico e mandam-nas passar a falar em mandarim.
A Língua-Pátria é o mais seguro capital simbólico e identitário do Povo.
Ah pois é. Daí, que fazem os académicos falsamente diplomados? Aplicam-lhe o simplex ortográfico e fazem dela uma
babélica vozearia de casa-de-alterne fundada em Goiás com sucursais em tudo o
que for foral lusitano.
Além de tudo isto, há os eufemismos aldrabões com que os burrocratas da má-fé maquilham a
realidade. Por exemplo: chamar “requalificação”
àquilo que é nu e cru despedimento.
Ainda na semana passada ouvi isto de um requalificado,
perdão, reconduzido no cargo.
Como Sócrates (por exemplo ele) foi primeiro-ministro entre 2005 e 2011,
o mais curial é explicar-lhe estas e outras coisas como se ele tivesse seis
anos. É outra verdade simples, aritmética no caso: 2011 menos 2005 igual a
seis.
Verdades simples. Não quero chamar-lhes solenes. (Mas são-no.) Solenes, só as missas e os embirranços. Como
não frequento as primeiras, é solenemente que pratico os últimos. É talvez por
a minha criação datar da época em que a ignorância se envergonhava de si mesma.
Hoje, não. Hoje, a ignorância é curricularmente obrigatória. É arrogante. É
afoita. É atrevida. É insolente. É governante. Superiormente lúcido, o grande
Pessoa referia-se à “sinceridade”
como “prática anti-social”. Para
crescer sem ser a pulso na carreira, sim. De gentinha a gentalha, o passo não é
muito largo. Falo desse tipo de gente que tem quatro pés e nenhuma mão – se não
na anatomia, decerto na mente. (Que mente, mente sempre.) Subitânea, por súbita
e instantânea; soturna, por solipsista e nocturna – a récua de bestas que nos
espezinha e estruma a vida não tem de ser encarada e zurzida senão a chicote
judicial legal e legitimamente brandido. No fundo como à flor, trata-se, quando
e quanto não mais, da derradeira maneira de nos devolvermos, a nós mesmos, uma
cara de gente, em vez de barbearmos ao espelho uma espasmódica carranca de
chafariz mais própria de sofredor das tripas do que de portador de humano
semblante.
Entretanto, Dezembro faz pela vida. Faz, não – vai à vida. Como à vida
vão as 32 famílias dos recém-requalificados
do Centro Distrital de Santarém da Segurança Social. Eu disse “Segurança Social”? Disse mal. Insegurança Associal é a verdade simples
alternativa.
À caridadezinha, o menino-jesus medeia o burrinho e a vaquinha. Já o
pagão pai-natal, de quem se não conhece nem mulher nem filhos, nos deve fazer
concluir que o mais sensato ainda é irmos chamar Pai a outro.
Ou, como diria a botóxica
Manuela Moura Guedes, anda uma pessoa a
criar cães para isto.
Sem comentários:
Enviar um comentário