Da
iníqua alegria e coiso
No cubículo envidraçado a plástico que a
gelataria berma-fluvial reserva aos fumadores, a uma luz-néon toda tela de
Hopper, o rapaz cego lambe o seu cone de baunilha com uma bola de chocolate e
outra de limão. A seus pés, o cão labrador que o guia, animal de negro cabelo
lustral e muito limpo, carvão brilhante na cegueira de tanto néon. Mestre
cicerone de seu amo, espera aos pés dele sem um monossílabo sequer, dando a
ideia de poder fazê-lo para o resto da vida, isso de esperar por ele, sempre
por ele e só por ele, mesmo que o cone de gelado venha a revelar-se, como a
cegueira, infinito.
Eu sou o outro tripulante de tal nave. É
pelo entardenoitecer. Já soprei o férvido abatanado, já queimei na boca um par
de cigarros dos de enrolar, já me apeteceu ir de vez para a Noruega – mas fico
mais um bocado. O que entretanto faço, é lapijar cifras para a crónica da
semana. Coisas assim:
Antigamente,
ao cabo do curso davam-nos o diploma, hoje dão-nos o passaporte;
Isto
é um país de patetas que se julga de poetas;
Para que
o raso aprisco suba a zimbório, há que ter locanda trepadora;
Dar
um salto alto não é o mesmo que andar de salto-alto;
ABC –
Angolanos-Brasileiros-Chineses: o Colonialismo Contra-Ataca;
Quem te
visa, teu goldinimigo é;
Anábase
da legionella político-financeira: ébola do regime;
Esquizofrenia
geral dos colarinhos-brancos: o espírito santo a dar cabo do pai e do filho;
Em alemão, ‘Coelho’
diz-se e escreve-se ‘Kaninchen’: está tudo explicado;
Podridão:
o meu País é Podregal;
Potamónimos
da minha vida: Mondego, Ceira, Tejo, Vouga, Pavia, Lis, Vala do Norte;
Educação,
Saúde, Justiça: três tiros no porta-aviões;
Impressionante,
o que por aí vai de mortes agrícolas por causa da tractorose;
Demissão
do ministro: mais vale sair uma tarde do que ficar o Macedo;
Esquisito,
aquilo em Santarém: portuguesíssimos cidadãos e cidadãs normais que, correndo à
noite por saúde, divertimento e convívio, se tornam ingleses de repente:
midnight runners ou coiso;
Rapaz
cego com cone de baunilha, labrador bonito a seus pés.
Nisto estou – e a crónica por fazer. No
mesmo caderno, reencontro-me com uma citação tão mais perturbadora quão mais
acertada: “"O futuro onde estamos
tem a iníqua alegria dos sacanas.” (Rui Nunes o dixit, in Uma Viagem no
Outono). Pois tem, senhor Rui. E a inócua tristeza dos acéfalos também. O
autismo eufórico deles sacanas é mortífero. A gente vive por aqui um genocídio
daqueles tipo devagarinho, género tristeza-pegada.
Lapijo ainda, ainda assim, um exórdio de
diálogo cénico tipo ’tás-doidinho-ou-quê:
–
Olá, sou o Virgílio das Éclogas & Bucólicas.
– Ora
viva, sou o Fonseca dos Midnight Runners & Coiso.
Estou feito ao bife com sabor a petinga. Custam-me
muito, os dias que não são terça-feira – porque é às terças que componho a
crónica das quintas, por a terça ser o dia em que a minha vida faz algum
sentido, uma vez por semana ao/ou menos. A jornada herdeira da segunda-feira
torna-me benevolente e perdoável a ilusão de ser útil. Os outros dias encorpam
o diabo do ócio involuntário, isso a que os sensatos chamam desemprego e a que o Passos Kaninchen chama oportunidade. É como se o horror vácuo
dos domingos durasse seis dias de enfiada. Hei-de eu ainda, nesta vida que não
há outra, lograr escrever como o meu Pai pintava e como a minha Mãe povoava a
Casa? Não sei.
Sei tão-só que a metáfora de remate me esperava, fácil e
justa, desde início: que por este morredouro de poe(pate)tas o mais é cegueira,
o mais é ainda gelarmos de tanta espera, Mister Hopper.
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