Tresloucada doença
prolongada
Os jornais de antigamente chamavam “tresloucado acto” ao suicídio. Quando no activo da profissão,
nunca fui muito amigo de noticiar suicídios. Talvez a minha repugnância pelo
tema derivasse do respeito (e do temor) por essa máxima privacidade que é a
terminação auto-infligida.
Segunda-feira passada, os jornais parangonavam mais uma
tragédia portuguesa desse teor. Um canalizador desempregado de 43 anos
atirou-se para um poço aberto. A diferença está em que arrastou com ele o filho,
menino de tão-só dois anos de idade. Foi numa aldeia de Viana do Castelo.
Parece moda moderna, esta de precipitar os próprios filhos
no reverso do futuro. Acto e facto pungem e consternam em acerbidade aspérrima
a todo quem não estiver embrutecido de vez. E fazem pensar toda a pessoa a quem
não apenas o pente concorra à cabeça.
Não me resulta difícil, franca e infelizmente, ver naquele
poço sem cobertura o pélago da selvajaria hipercapitalista do nosso tempo. A
voracidade do Deus-Dinheiro revela-se cada vez mais mortífera. A vida pessoal,
esse tesouro portátil que só se gasta uma vez, deixou de pesar na balança de um
prato só dos mandadores. Daí que eu considere, o mais sinceramente, o mais
acusadoramente, que quem matou aquele pai e aquele filho tenha sido o Governo
da Nação.
É peregrina, esta minha ideia?
É tola, esta minha raiva?
É desajustada, tal minha arrelia?
Seja. Seja. Seja.
Mas.
Mas algo tem de ser feito para que o desassossego
contagie, também, os criminosos da Alta-Finança. Para que a intranquilidade se
aposse, também, dos corruptores da Banca. Para que o medo erice, também, o
espinhaço dos bastardos adoradores do ouro.
Aquela aldeia de Viana do Castelo é Portugal todo:
sinédoque tão triste quão real. O café em que fiavam a bica àquele canalizador
sem esperança é o café a que todos vamos. E aquele poço a céu-aberto é deveras
o que vos disse que é.
Os jornais de antigamente chamavam “doença prolongada” ao cancro. Eu não. Eu chamo “doença prolongada” à matilha
governamental. E doença tão prolongada, que me não parece seja curável enquanto
o solo pátrio não estiver juncado de pequeninos cadáveres de crianças que
cometeram, sem no saber, o “tresloucado
acto” de nascer em Viana do Castelo, isto é, em Portugal.
6 comentários:
com as devidas vénia e licença, roubei.
Toda a licença, FêJota.
bravo (se me é possível 'bravar' tão triste crónica sobre tão desesperado assunto)
Merci, Madame SSV.
Bom texto, boa prosa.
Obrigado, Rui.
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