Máquina-do-Tempo
Nunca gostei grande coisa de ser contemporâneo do meu próprio corpo. Significando isto: que o tempo (f)actual para que nasci, leitor, é de uma pobreza que sinto não merecer.
Assim, e em talvez ingénua alternativa, tenho feito da cabeça aquilo para que uma cabeça mais serve: máquina-do-tempo. Ou seja: estou aqui com este corpo, liquido o meu IRS, tenho facebook & coisital – mas é que habito, deveras, outras esferas.
Um destes dias, por exemplo, era para mim 10/5/1782. Dois dias depois da morte de Sebastião José de Carvalho e Melo, vulgo marquês de Pombal, um alvará régio proibia a vinda de mulheres do Brasil para o Reino de Portugal, então titular daquela então colónia. Dez dias e dois anos depois, um furacão assolava Santarém. A interdição de fêmeas brasileiras nos meandros de Lisboa & Arrabaldes não era novidade: já a 10/3/1732 (meio século mais dois meses antes, portanto) o anti-lenocínio por decreto tinha sido o mesmo.
Não, do meu tempo não gosto grande coisa. Prefiro-me por outras aragens e paragens. Prefiro-me, ileso de afins difamações, vivo-da-silva no dia 15/3/ 1751, quando passou a ser ilegal pendurar cornos à porta dos maridos atraiçoados. Ou então entre escombros em busca da família no dia 23/4/1909 de má hora, quando um terramoto trepidou Benavente, Salvaterra de Magos e Samora Correia, como se não bastassem já as cheias que nos afogavam sem clemência.
O dia 30/4/1984 já me não cola cromo à caderneta: em Abrantes, preconizava-se o PRD, fugaz partido que a 15 /6 do ano seguinte reunia em Tomar a sua primeira Convenção Nacional, Deus a tenha em Seu descanso.
Como poderia eu gostar de, aos 14 anos, ter 14 anos? Pois não rejeitaram a Presidência e a Assembleia da República amailo Governo uma exortação do líbio Kadhafi relativa à independência da Madeira, que, nesse ano mesmo, se recusou a comemorar o 25 de Abril?
O meu/nosso tempo sabe-me de mais à factura da água do Cartaxo, mais cara e mais abusiva do que a do vinho. Para minha consolação, porém, posso sempre adormecer na noite de 14/10/1773, data em que foi finalmente interdita na capital a livre soltura de porcos pelas ruas.
Só que, agora, não apenas voltaram, os porcos, às ruas, como não saem da televisão, das soberanias e da minha vida. Da minha vida – sem sequer uma indígena colonial das boazonas à vista para efeitos de, com o meu corpo de (antiga) mente etc.
1 comentário:
Gostei imenso. De um modo geral, gosto sempre. Abraço, 15de Agosto de 2011.
Enviar um comentário