30/11/2009
Rosário Breve nº 131 - www.oribatejo.pt
Viseu, segunda-feira, fim da manhã. Fui pela Rua Formosa, virei para a Direita. Vivi, entre pessoas que passavam, a evidência de todos sermos ambulatórias lápides: e anjos desasados. Não foi uma sensação mórbida, não foi um arroubo lírico. Foi uma evidência solar. As pessoas: para cá e para lá, seus rostos historiando as vidas que passam na rua que fica, no tempo que passa.
Entrei no Café Isabelinha, comoveu-me a visão, numa estante de vidro, de embalagens de bolacha-baunilha: a trinta e cinco cêntimos, o preço da minha infância. A três mesas, quatro anjos: uma mulher não jovem, três gajos de trintas. Cervejas e copos de branco. Estive perto deles até o fim deste parágrafo.
Voltei a passar junto à casa onde nasceu (1864) e morreu (1896) uma das mais amadas vozes do fado de Coimbra: Augusto Hilário. Dada a manhã, branca e lavada como um azulejo, experimentei polir a luz: bafejei-a, passei-lhe um pano mental, brilhou como um cristal. Antes, do lado da sombra, tinha passado rente a um dos mais representativos exemplares da fauna local: um padre. Encoleirado de branco, andava de saco de compras. Passei por ele, temendo pela minha alma.
Segui, lapidar e angelizado, pelo lado do sol até que o xadrez da arquitectura me permitiu novas quadras de sombra-luz. O meu coração pulsava num sossego de paço episcopal em dia de bispo fora. Vi uma rapariga dando a mão à mãe deficiente, que me olhou desse detrás tão remoto da loucura. Em que dimensão existimos, quando somos vistos passando na rua? É tudo em campo santo: hilários datados a prazo entre pedras: as ruas do xadrez calçadas de pequeninos paralelipípedos de bolacha-baunilha numa estante de cristal brilhante como a minha infância a trinta e cinco cêntimos.
26/11/2009
Sim, a História tende a dar voltas de corno
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Nazis a Judíos Judíos a Palestinos - Powered by Google Docs
25/11/2009
Dicunt Mihi
Os rostos tornam-se moedas a troco da chuva,
os cães levam pela cidade a pobreza dos ursos,
a carrinha do circo ladra indigências
e as senhoras de chá chitam a tarde.
Ao longo dos rios despojos de prata
juncam os areais, as sombras, as vésperas.
O homem dos gelados lamenta o Inverno,
dois filhos pequenos, um deles doente.
Fogueiras ciganas fumam orientes,
à varanda o canário risca de amarelo
a cinza da noite que vem já não tarda,
um polícia ronda o parque vazio.
Derradeiras carreiras rumam às aldeias,
aos vales e encostas onde os povos são.
Há gritos no escuro, bandas do hospital,
crianças pintainham carregadas quais soldados.
É bela, a vida.
Dizem que sim.
Oito para Naturistas
Souto e Louriçal, 17 e 18 de Novembro de 2009
1. AVES
Aves suaves brandas em doçura,
caligráficas linhas de cor clara,
rara cada uma e muito cara,
de brando suave rosto na altura.
Gosto de vê-las passar, gosto.
São o vento feito penas esvoaçadas.
Logo que passadas, até aposto
que ao futuro tornam, olvidadas
de quanto o passar custa, se pensado.
Não brando ou suave, tal passar
vale o que vale, ao vento voado.
Mais não digo, que espero tornem.
Ora é de noite, por ora dormem.
Vou passando eu, é noite, acordado.
2. PEDRAS
Jóias pobres.
Ao decote todas, porém, da Senhora Terra.
Cristais de ninguém.
Só as crianças lhes conhecem a
íntima
ínfima
infinita
raridade.
Somo-las todos,
a todas.
3. RIBEIROS
Veias que mercúrio abrem à flor do olhar.
Estreitos e estritos milagres populares.
Vias-vidas que a gente vê passar
e ligar os nenhures a lugares.
Visitados por aves e lavadeiras
e pela meninagem fugaz do fugaz Verão,
todos os ribeiros no fundo afinal são
o mercurial milagre da condição.
4. MULHERES
Sinto-as como emanações do porvir sabido.
Reconhecem tudo: quintais, ervas, ruas, homens
nem tanto.
Entre a garça e a ema, o lúcio e a arara: são.
Entre a rosa e a mansarda, o ribeiro e a pedra: são.
Nunca como os homens deixam de ser.
De estar,
nem tanto.
5.SEXO
Não tem nada que saber.
Nem ensina nada.
6. NUVENS
Dedadas do Invisível Fantasma.
Móveis sobre as casas, suspensas das casas.
Volúveis províncias desertadas a frio.
Maravilhosas no Verão, sonhando-se invernais.
Excepções que confirmam a Regra do Azul.
Sobrenaturais.
7. MÃOS
Aranhas: sem veneno nem teia nem celeiro.
Expostas às moscas.
8. ROSAS
Um tempo houve em que as rosas puderam ser apenas flores, coisas vermelhas do reino vegetal, outras brancas, amarelas, rosas sempre. A poesia porém chegou – para transtorná-las. Passaram, involuntárias, a envelopar desejos consuetudinários, triviais, rosas púbicas, negras portanto, roxas rosas, portanto matrimoniais à flor-senhor-dos-passos. E por aí.
Agora quisera fossem, não mais que rosas, o que as rosas são.
Mas não.
19/11/2009
A Luz Fraterna - de António Osório
17/11/2009
Acontecimiento - tradução de Gabriela López Zubiría
Y asi comprendo que eran personas después de todo
Pero personas que nunca conocí ni conoceré
Los pájaros son personas de las que no sabemos el nombre
Me pasa que con cierta frecuencia no sueño(en)
Callado en un discreto sitio y miro a los árboles que quedan
El viento los incendia de respiración convocatoria
Yo comprendo y callo más aún y no sueño nunca
Nunca levanto vuelo y nunca respiro, y entonces
Entonces es que sueño con esta persona y aquella
Y después voy a llamarlas por su nombre y ellas vuelan
Nunca me (re)conocen ni me (re)conocerán
aconhetecimento
terça-feira, 17 de Novembro de 2009
acontece-me sonhar com pássaros que falam
ao acordar compreendo que eram pessoas afinal
mas pessoas que nunca conheci nem conhecerei
os pássaros são pessoas de que não sabemos o nome
sucede-me com alguma frequência não sonhar
calo-me num sítio discreto e olho as árvores restantes
o vento incendeia-as de respiração convocatória
eu compreendo e calo-me mais ainda e não sonho
nunca levanto voo e não respiro nunca e então
então é que sonho com esta pessoa e aquela
e depois vou para chamá-las pelo nome e elas voam
nunca me conhecem nem conhecerão.
és / ás
terça-feira, 17 de Novembro de 2009
és ar /serás fumo
és água /serás terra
és pedra /serás areia
14/11/2009
Rosário Breve nº 130 - www.oribatejo.pt
Telefonema do amigo V. para o amigalhaço S.
Tá? Tou. Oi. Oi. Segunda-feira dá? Dá. Falei co’ gajo dos jornais. Sim? Sim. Tudo tratadinho nos conformes. Que é que tens nas mãos? Luvas. Está frio. Frio porte. Pois. E Angola e coiso?
10/11/2009
05/11/2009
Cegonhas do Louriçal - um fado
Rosário Breve nº 128 - in www.oribatejo.pt
A famigerada Gripe-A, vulgo Suína, anda por esse mundo afora muito contentinha a papar imbecis que a temem mui piamente. Pouca gente parece ter percebido que a dita epidemia não existe. Mais: que se trata, de facto e deveras, de uma falcatrua à escala planetária das sinistras farmacêuticas, cujo trabalho é inventar doenças para os medicamentos em armazém. Lembram-se das vacas malucas? Lembram-se das galinhas doidas? Que é feito dessas raparigas? Hum?
Cada vez que me aparece no televisor o senhor doutor Francisco George, aquele senhor Director Nacional da Saúde cuja configuração facial, agravada pelo incompreensível risco ao meio, recupera no meu mesencéfalo o terror dos duendes dos contos de mentir à infância, cada vez que aquele senhor me aparece, assim português suave e definitivamente provisório, eu ralho cá para com o meu fecho-éclair: “Mas q´ais gripes ás, pá, mas q´ais gripes ás, pá!...”
De modos que é assim: somos um país de honestos palermas. Em plena República, apareceu a senhora-de-fátima a voar por cima duma azinheira. Cristo espadeirou na Batalha de Ourique. O padre Fontes organiza todos os anos aquela vigarice de Vilar de Perdizes. O Jardim é dono da Madeira. E até o Sporting de Braga, terra de arcebispos e de calhaus dotados de olhos, já mete medo. Não sei que raio faça à nossa vida, sinceramente e de facto e deveras.
À nossa vida, sim, que a Gripe-A teima em transformar em Vida-B. De Burro.