Hoje são apenas 20, apenas Dezembro, apenas 2007.
Há coisa de uma hora (apenas também) publiquei neste Canil uns versos que já lá vão. Não deles quero falar (nada tenho a dizer deles que neles não tenha dito). Quero dizer isto: o próximo texto que aí vem (diz-se infra, na linguagem bibliotecoisa) foi composto em apenas-Março deste apenas-2007 das nossas vidas. Surgiu-me tal prosa no mesmo caderno em que, desde apenas-24-de-Novembro-de-2006, venho perdendo tempo, tinta e coisa à custa de uma história com homens e anjos à mistura. Para tal história, este texto não contava nem contou. Dele capitalizei, ainda assim, alguns recortes prosaicos, assim a modos que azulejos verbais. Venho, aliás, fazendo o mesmo com cadernos (muuuuuito antiiiiiigos) que em casa me socalcam paredes a partir de alcatifas. Pode um homem roubar-se a si mesmo? Pode. Se for homem. Cá vai disto, com vénia à vossa paciência e ténia ós puta-que-os-pariu que fazem da arte vida em vez da vida arte.
*******
O Botânico, todo nimbado de clarões, fosforescia a poente, de todo alheio à miséria de tanta felicidade. Ia ao Pratas comer sandes de cavalas e beber vinho traçado com gasosa. A noite levantava-se das calçadas, reiterada pelos monumentos e contrariada apenas pela mocidade arqueológica das palavras. Inversa como uma pérola caída a um poço, a Lua rangia como uma prata de tabaco. O coração já era esta coisa irrígua. Era já como todos os homens: um saco de vísceras apertado em cima pelo olhar.
A primavera, por tardia, entrechava um lance de rio num aparato lúdico que não mais, nunca mais, deixou de comover. Não tinha, como agora, a quem dizer isto. E não havia saída por onde a vida entrasse.
Depois da taberna do Pratas, sobrevivia à descensão de vielas e couraças e recolhia à Brasileira, de onde, àquela hora, haviam já desertado os fantasmas benignos que comparam todos os hojes a todos os ontens. Um tipo professor de matemática, sósia quase perfeito do Oliveira Martins historiador, resolvia, sem recorrer jamais às soluções, problemas de palavras cruzadas, que tirava da pasta de couro em recortes de jornal. A Brasileira era povoada de outros sósias muito razoáveis: de Lenine, de Einstein e de Carlos, o Príncipe de Gales contra quem se casou Diana Spencer. A Guida bocejava ao balcão de pastelaria e tabacos. O senhor Damião, de crânio lustral e duas excelentes bossas na testa clara e alta, separava pretas de brancas na bandeja de moedas, recolhendo numa lata que fora de café as espórtulas colectivas. Entrando, boanoitava toda a gente antes de chegar à mesa do costume, a do canto esquerdo, onde terminava o balcão da Guida. Permitia então que florisse a pétala tóxica da poesia. Não comia muitas gajas nessa altura, nem nas que se seguiram.
Era novo como o mundo. Mas foi então que o insensato amor pelos livros tornou impossível amar a vida como ela às vezes até merece. Uma vez, a essa mesma mesa de café, o jornal vivia de uma peça sobre Hemingway. Uma fotografia do escritor encimava a página. Era amarelo, o fundo da foto que revelava aquele leão branco e mitográfico. Foi inevitável desejar passar a vida em montes e por valados, como supunha que passava Nick Adams, comendo alimentos enlatados, como Nick Adams de facto comia. Era a alba da perdição: perdia a vida de vista, recebendo em troca um cinema fechado. Se hoje vida e livros seguem elipses separadas, por outra razão não é que a do desejo invencível de carne enlatada. Começar a marcar os autores por que se trocou a vida: por que se trocou a realidade – mais bem dito.
Deixar de ver pessoas. Nunca mais ver pessoas. Toda a gente deviera personágil. Mexiam-se – mas eram de papel. Diziam – coisas de tinta. Quando o Lennon morreu, por exemplo: uma cassete caída ao chão. Sete anos antes disso, o vizinho do NSU tinha sido morto pela canção mais famosa de Roberta Flack. No ano seguinte ao lennoncídio, Carlos e Diana matriculavam-se num casamento infeliz, como quase toda a gente. Estas coisas assim. Nos quintais suburbanos, nespereiras atacavam-se a si mesmas de raquitismo, dando depois à luz meia grosa de pepitas de um ouro ferrugento sob um céu de esmalte côncavo. Estas coisas assim.
Na Bertrand, ao lado da loja de fotografias, subidas as Escadas do Gato, os livros cheiravam a livros da Bertrand. A Colecção Dois Mundos steinbeckava a troca da vida pelo papel-e-tinta. A Colecção Vampiro simenonizava e agathava toda uma galeria feliz de mortos indolores reumanizados pelo manso alcoolismo de Monsieur le Comissaire e a esparsa misoginia do belga de crânio ovóide baptizado Hercule. A Colecção Forma danielfilipava linhas que não precisavam de chegar ao fim da linha para ser finais. Chomsky e Schaff surgiam das bandas de Almedina.
No Pinto, ovos verdes; no Mijacão, bifanas – vitualhas que frigiam a língua com uma lhaneza exclusiva e esconsa de pardieiros de rés-do-chão. Descendo as do Gato, à esquerda era o Pinto e à direita era o Correia Corre-Pouco. Dos pipos, escumava a beberagem roxa de iniciação à dessaburração da tristeza. Iscas de fígado de porco e sardinhas fritas cantavam louvores ao alho, à folha roubada ao loureiro sinalizador de todo o portal de vinho, ao vinagre e à cebola. Torresmos rechinavam como olhos cegos de profeta assando ao sol do deserto, mas é possível dizer que recordavam, antes, unhas torradas depois de roídas, também. Aí foi começado, sem no saber, o urdume do arquétipo de um tal António Tomás, a quem coube tão-só aguardar pela demora.
Iam os livros a esses locais encantadores. Os homens do lixo apareciam para a sopa servida em malgas de folha inox e conversavam sobre os filhos que queriam na universidade, um dia. Um engenheiro hidráulico empregado na Câmara, cuja cabeça inflava a forma, a consistência, a tonalidade e o efeito do bago de uva, expectorava recordações revolucionárias pobremente traduzidas a verre-de-trois do Maio de 68 parisiense. E tudo isso foi de ingerir e aproveitar como bênçãos mais que iguarias sólidas e líquidas. Se apenas agora, de tudo isso, uma recordação redactora redige e recorda, não se perdeu, como António Tomás Jesus Duque também não, pela demora.
Coelhos perfumados de espargos não eram mortos por caçadeiradores. Não. Viviam nos montes de Nick Adams além do quintal do meu prédio e não acabavam dentro de conservas. Por esses montes era verificável por outra razão a pulsão da lua nos cedros.
Os animais – só os animais sobreviveram aos livros. Só eles se mantiveram reais, espessos, existenciais, únicos. Permitia – vezes de mais, talvez – que ousassem plasticinar o coração, pisado de mais as nervuras vasculares da mioleira. A mulher da cabra somava duas cabras, aos olhos e ao meu lápis. O pastor pontificava sobre uma nuvem de lã com patas de que caganitavam azeitonas de estrume. A senhora do caniche era nervosa dentro de seu colete de fecha-barriga. A menina da foca era sensual como uma punheta de olhos fechados. Só os perus eram mortos a bagaço e à facada, quando sobre eles se abatia a voraz ternura dos natais.
Interessava sobremaneira António Sérgio entremeado de Conan Doyle e Júlio Dinis. Maria Alberta Meneres franqueara, de par em par, as portas ímpares da poesia. Era já o coleccionador coleccionado. Sentia o roçar dos anjos.
Tantos anos depois do casamento mortífero de Carlos contra Diana, não foi possível evitar a tal “desordem eólica dos livros dos outros”. Daí que tenha resultado improvável negar a emoção perante o que escreveu Julião Quintinha a propósito de Teófilo Braga: que, muito perto do fim, o velho vivia, como um pobre terminal, de cubos de marmelada, bagos de arroz e café chilro. A mesma comoção avassaladora (a mesma assamara, enfim) ao saber que Wittgenstein mecenizou parte substancial da herança em favor de Rilke. Por ser eidética, a leitura filmou Cardoso Pires, a bordo da nau de Lisboa, coleccionando os dizeres, os gestos e as manhas dos morning drinkers de Santos, de Alcântara e da Rocha Conde d’Óbidos. E Eça procurando o nirvana intestinal na asséptica Suíça, perdido por Ortigão como Watson perderia Holmes no desfiladeiro ao lado. Ou Mann (Thomas, não Heinrich) datando de 1900 uma Montanha Mágica que era, de facto, de 1899. Pouco depois, Pessoa, enxovalhado de camisa, rogaria ao barbeiro matinal que lhe fosse a buscar aguardente na garrafinha preta. Freeling, depois ainda, viria nivelar Maigret com Macbeth – e era uma exaltação, sentir essa justiça, essa reparação. Como se as árvores de nome em latim do Botânico dissessem:
– Fizeste tudo mal, mas está tudo bem.
Não digo que fosse precisamente então, até porque não foi – mas é possível dizê-lo agora: que se tornou tão evidente quão inelutável a urgência de devir arquitecto e I. e J. e L. e A.
Caramulo,
tarde de 20 de Dezembro de 2007 (intro)
e noite de 14 de Março de 2007 (capítulo cortado)