29/06/2006

A Riqueza das Nações (título roubado a Adão Silva)

"O que o poeta desconhece, a poesia sabe."
Carlos Nejar (poeta brasileiro nascido em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, em 1936)
Pois, não sei.
Digo eu.
Ainda é nossa a disposição das coisas na terra.
São estes os dias, não conto com outros.
Estas coisas são nossas - e nós somos da terra.
Nós celebramos o Rio como Tempo.
Sim, coleccionamos pedrinhas e ossos.
O meu trabalho é este.
Estou (estamos) por dias.
Há uma encosta perto de minha casa.
Eu digo minha casa como quem diz
meu corpo.
Há uma encosta perto do meu corpo.
Desce por ela água - e a água canta,
pura, em pura auto-celebração.
Eu passo e ouço.
Eu passo no Rio como no Tempo.
Nós dispusemos assim as coisas.
Olho o banco de pedra do parque.
Está sempre ali - como uma pessoa fiel.
Olho e olho e olho - um é ele.
Uma massa de cartão fazia o céu.
Eu consultava a montanha suspensa,
suspenso.
Uma casa de vasos às janelas.
Gente de óculos, sapatos pretos.
Gente na capela fria, adorando o cartão.
Nós derivamos, declinadores.
Eu conheço as pessoas.
Eu passo no Rio há muito Tempo.
Eu conheço-nos.
Nós somos as coisas dispostas.
Vemos vasos e ouvimos água.
Somos pobres disto tudo.
Pode acontecer que sejamos
um banco de pedra.
Somos claramente nocturnos.
Fotografa-se a si mesma a Lua.
Um dia, outro, o mesmo.
As nossas mãos animais,
a nossa memória zoológica,
os nossos cantos rituais,
a nossa paixão demagógica.
Na lareira arde o fogo convocatório.
Um traço de giz de avião
no céu das viagens.
Não queremos que o telefone toque.
Se ele tocar, teremos de envergar o fato escuro,
regressar ao adro da igreja, rever os amigos
envelhecidos do Tempo primeiro, primário Rio.
Aceitar seus pêsames roucos.
Eu já atendi o telefone.
Mas o Rio flui, cantando (contando) pedrinhas, ossos -
a filha do dono do café já demolha
de seiva soutiens e telemóveis.
Amamos mal mas por bem.
Não sabemos. Não lemos. E
as coisas sempre estiveram à
disposição.
Sucedíamos tachos de guisado.
Ríamo-nos, muito púberes, da comichão
do leite.
O Tempo fluviou-nos.
Estalidam na noite dos quartos os móveis,
o outro corpo rente a nós dorme inocente
da nossa culpa.
O Tempo desenha a persiana,
emoldura de grés o caixilho.
Cheira um pouco a gás, a gata
soluça sonhitos patiformes,
caiu nos mosaicos a toalha da cara.
A própria cara sobe, desperta, ao tecto.
É tão cedo.
O meu trabalho é ser fiel.
Todos os dias o mesmo, o outro
Rio, aquele não posto à disposição, aquele
que conta.
O que me leva.
Nós levamo-nos.
Canta a água, escuta o banco, o parque
freme, tudo está por dias,
as coisas são móveis, nós
não dormimos,
é escuro o quarto,
na capela de cartão os santos
registam os pedidos,
apertam de preto os sapatos,
somos ricos disto tudo.
Caramulo, manhã de 26 de Junho de 2006

4 comentários:

Anónimo disse...

A pobreza das almas...

Daniel Abrunheiro disse...

As almas, a havê-las, são ricas. A terra é pobre: quando é alma. Digo eu.

Anónimo disse...

"A Riqueza das Nações" não é do Adão Ferreiro?

Daniel Abrunheiro disse...

Ferreiro era a mulher dele, a Eva Jardineiro.

Canzoada Assaltante