17/01/2006

ALMANAQUE VILÃO - 1. Casal com Serpente Verdamarelanegra

Na casa da aldeia, enfronhado nas mantas da cama, sepultado quente no abafo, o corpo escapou ao mundo. Pernas e peças roçagam calor de gato. Satisfação geral do metabolismo. Persianas corridas sobre os olhos. Um sonho abre-se como um pano de palco.
Um casal na erva. Ele é chinês, ela é indiana. Estão a penetrar-se com atenção, ambos de olhos fechados, ambos com muito prazer e toda a consideração. Uma serpente envolve-os, desenvolve-os, larga-os, retoma-os, cola-se-lhes, liberta-os. A cada passagem dela por eles, colora-os de suas escamas colantes: verdes, amarelas, negras. Os amantes, matizados, perfeitas estampas duplas verdamarelanegras, continuam o amor de olhos fechados. A cobra, muito grande, desaparece sob a alcatifa de erva. O chinês ergue o rosto impresso de serpente: os olhos, agora abertos, vêem a câmara fotográfica da narração através dos losangos verdes, amarelos, negros. Quando avanço para o casal, piso o corpo oculto da cobra, em relevo por baixo do ervado. Da erva, os dentes afiados da besta emergem para navalhar a descrição. Não sinto medo. Devo evitar ser esfaqueado, é tudo. Não é tudo. Quero ver de perto a pintura do duplo corpo, a estátua enganchada dos amantes. Quero ver se são ainda um homem e uma mulher separáveis ou se a serpente os colou para sempre, siamesando-os sem retorno. Nisto, os três (ou uma+dois) desaparecem. Resto eu e o cenário, não isentos ambos de novas aventuras, uma destas noites.



Tondela, tarde de 20 de Dezembro de 2005

4 comentários:

Anónimo disse...

Voltei a sorrir. Obrigado. Tens momentos de verdadeira ascese. Sorrio sempre com os teus escritos.

Anónimo disse...

Mexeste no texto. Ficou melhor, desculpa opinar. Com um sorriso...

Daniel Abrunheiro disse...

opinar é preciso. thank you.

Anónimo disse...

Bem sei. Mas é só por respeito. Por um imenso respeito.

Canzoada Assaltante