21/11/2005

O Cedro e a Lua - I - Nota Prévia

O Cedro e a Lua é o registo diarístico do meu segundo internamento, entre 4 e 18 de Novembro de 2005, no Serviço de Tratamento de Alcoologias (Pavilhão 3) do Hospital Sobral Cid (Ceira, Coimbra). Por graça, chamo “ornitologia” à alcoologia. É piada pessoal, não ligueis.
Compor um diário não tem nada de especial. Mas expô-lo (sendo, para mais, de cariz alcoológico), pensando bem, para quê? Ou para quem? Na verdade, a pergunta sobrepassa o diarismo e atinge a geral literatura. Publicar (seja, em arte, o que for, realmente, para quê? Tenho esta teoria: para que o artístico exista de facto, depois de, de facto ou não, vivido. No meu caso-
-álcool, de facto-bebido.
Segundo internamento, disse. O primeiro decorrera entre 5 e 18 de Fevereiro de 2005. Já este ano, portanto. Fora o feliz culminar, por assim dizer, de uma longa e pedregosa ascese. Não tenho culpas a atribuir. Nem a nada, nem a ninguém. Ou se a algo, a tudo. E se a alguém, a mim.
Cheguei a Fevereiro provindo de uma amarga decepção sentimental e de uma amargurante desilusão pessoal/profissional. Para mais, via pouco ambas as minhas filhas, não por culpa delas nem por culpa das mães, mas pela (des)vida dita-literária que escolhi (e assumo, e carrego) para mim. De modo que saí do Pavilhão 3 a 18 de Fevereiro e aguentei a seco durante quase seis meses. Herói!
Paradoxalmente, as coisas começaram a correr-me bem desde então. Ofereceram-me trabalho como escritor de teatro e de matérias quejandas numa companhia muito bonita de/em Tondela, uma editora convidou-me para publicar um livro (aceitei, vai sair em 2006, espero), arranjei uma casa com lareira e gata e tudo. Ah, e retomei a companhia do meu amigo Jameson (irlandês, tripla destilação), um fulano de pele de vidro verde e olhos cor-de-ouro que, tomado em jejum, nunca desilude, bem antes pelo contrário. Antes que ele, Jameson, ganhasse o que eu perdesse, voltei a Coimbra. Ao Pavilhão 3, sim. De onde agora regresso com este Cedro e esta Lua. Para que se tornem definitivamente reais. E para vós.
À vossa saúde.


Botulho, 20 de Novembro de 2005

8 comentários:

Anónimo disse...

Cão, abres a alma como ninguém e espero que isso ajude. Connosco já sabes que contas sempre e julgo que de facto é duro ter que ser abstémio numa Confraria de tintos...

Daniel Abrunheiro disse...

gracias, amigo(s).
de facto, ajuda.

Anónimo disse...

invoca o Régio e diz ao cabrão do Jameson: Sei que não vou por aí!

Anónimo disse...

Fugir com muita pressa à impaciência das teorias, que toda a verdade é supersticiosa.

Anónimo disse...

A literatura e o alcool sempre convieram amigavelmente apesar das consequências.
A tua escrita será a mesma ?
Haverá uma literatura alcólica? Escritores existem, muitos e bons.

Daniel Abrunheiro disse...

amigavelmente? duvido. produtivamente? sem dúvida. ver os casos, entre tantos outros, de edgar allan poe, dylan thomas, fernando pessoa, malcolm lowry, william faulkner.
ao pé dos quais, aliás, sou zero. zerinho. a não ser a beber.

Gabriel Oliveira disse...

O amigo Jameson que escreva, então, esse filho da puta.
Há méritos que não lhe reconheço. Um deles, o da escrita.
E tu não és zerinho ao pé de ninguém, amigo Daniel. Poderás ser pequeno, mas sabes haver tantos tão mais pequeninos!
Para além de amigo, jornalista, escritor, sei lá, coisas tantas e tão boas, foste um professor ímpar, dos que mais me orgulho. E não precisaste de Jameson nenhum, porque nesses dias eu não tinha professor. E esse senhor Jameson, também me pareceu vê-lo apresentado como "o que reúne os amigos". Amigos? Amigos, uma merda! Onde é que eles estão, agora? Isto só me revolta por seres tão especial, Daniel, só por isso. Por isso é que dói.

SDF disse...

O jameson não vencerá. Apesar de celta, não tem magia. Magia tens tu, És tu: Mago do talento, feiticeiro da arte, alquimista que mistura letras em poção e as transforma no ouro original da beleza e do sentido.

Welcome back! We missed you. ;-)

Canzoada Assaltante