30/11/2005

O Cedro e a Lua - X - 12 de Novembro de 2005

Tondela, 12 de Novembro de 2005, sábado, 9h45

Isto é sábado, isto é Tondela. Fim-de-semana (merecido) do heroicoólico. Sober among sobers. Compra de jornais (Público, El Pais) do dia. Leitura dos Textos de Guerrilha do Pacheco, que mos emprestou meu irmão Zé Daniel. Agora estão, os livros, a fotocopiar na Enseada (Papelaria & Decoração, Lda.), em pleno coração comercial da vilacidadedeTondela. S. foi trabalhar cedo a Viseu (8h00). Zuca e Johnny lá em casa a dormir. Dosagem medicamentosa tomada a horas e a preceito. Café-com-leite-pão-com-manteiga. Não chove, o nevoeiro dissipa-se no ar fino e fresco. Novembro, enfim. Este marcador de tinta douroverde é novo em folha (pautada). Comprei-o, com os jornais e mais lápis e afiadeiras, na mesma Enseada. Delícias de sábado matinal: jornais, café com leite, artigos de papelaria. A vida suspende, por vezes, a guilhotina. E aceita ser adoçada de meia saqueta de açúcar, lentamente acolherada, sorvida sem ruído lábio-associal. Na Loja do Chinês, comprei um gorro e um par de luvas. Tudo de lã, tudo de preta cor. Conforto tépido. Raios partam a comodidade, isto é, a sobriedade, que não rende versalhada tragicómica alguma de jeito. Pausa, enfim. Isté Tondela, faz sábado.

Mesma manhã, 11h13

Encontro e conversa com um casal amigo na Doce Pérola. Falei/falámos sobre alcoolismo. O meu e o dos outros. Amigos de verdade. Andavam preocupados. Folgaram por me saber em bolandas de tratamento. Um encontro consolador, um diálogo retemperador. E, ainda por cima, é sábado! (Tenho o Mil Folhas do Público e o Babelia do El Pais para encetar. Para já, que se lixe o secót’che e o áiríche!)

29/11/2005

O Cedro e a Lua - IX - 11 de Novembro de 2005

HSC, 11 de Novembro de 2005, 6ª feira, 7h21

Dia de S. Martinho, parece. Despertei sem retorno às 5h50. Tudo bem. O dia anunciou-se no estore que a auxiliar se esqueceu de fechar à chave. Puxei-o: era o dia novo, eram os primeiros pássaros. As janelas trancadas que guardam a camarata aquecida não impediram a visão do vento penteando os cedros, as tangerineiras, os mansos pinheiros do hospital dos louc’omens. Espero agora a abertura da porta para descer à rua, onde passearei, veja-se, uma espécie de alegria.

Mesma manhã, 10h24

Uma espécie de alegria, pois por que não, sim? Ouvi música pelo discman, passeei todo aeróbico em roda quadrilátera dos pavilhões 1, 2, 3. Fumei um eficiente par de cigarros. O desjejum fora uma banana e a polpa de uma maçã. Dois copos de água valentes. Limpeza, desinfecção, desinfestação: sou um novo homem velho. Luto com a memória, ajudado pela experiência e pela paroxetina. O CMS e o CMM (também do internamento februário, regressou à base) estão comigo ao sol no terraço. Como se fora, ainda ou já, Fevereiro. Como se fôramos nossos mesmos filhos. O futuro de então era então isto. Mas quê? Tenho livros para ler (mais Luiz Pacheco – Textos de Guerrilha, 1ª e 2ª Séries – e mais muito outro autor). Que se trame a tram(p)a e enrede a rede. A vida segue.

Mesma manhã, 11h40

Chama-se, como a minha filhinha mais nova, T. Tem 40 anos e uma menina de dez. Anda há anos tentando descartar-se das malhas da heroa e da coca fumadas. Tem olhos emoldurados de ovos tristes, de pesadumbre tóxico. Não faz pena: faz só pen(s)ar. E este “só” é tanto.

28/11/2005

O Cedro e a Lua - VIII - 10 de Novembro de 2005

HSC, 10 de Novembro de 2005, 5ª feira, 6h10

Em vão desejei que os maus sonhos me não impedissem a segura navegação do sono. Ainda não são seis e meia da madrugada e já estou de olho vivo. Sonhei que me roubavam na Madeira durante um jogo entre o Nacional e o Braga. O Nacional ganhava 1-0 e eu perdia a paciência com um gajo e uma gaja que insistiam em me vasculhar a mochila à cata de bens revendáveis para a droga. Depois, S. estampava-se de carro contra o dinheiro que ia custar arranjá-lo (ao carro e ao dinheiro). Eis-me agora, pois, a esta hora lamentável, sentado na sanita para ter luz de escrita. Comi meia maçã no escuro, ouvi um trecho de sinfonia. Venha um cigarro e que Deus me dê lume sem me queimar de todo. (E já que estou assim sentado, adianto o outro serviço matinal. Raios partam os pesadilhos noctcórneos!)

Mesma manhã, 7h31

Não alinho na expressão – “Se eu soubesse o que sei hoje…”. Porque, se eu soubesse, então, o que sei hoje, que piada teria tido a vida tida entretanto então? Nenhuma. A mesma piada alguma que teria já saber hoje o que me falta saber amanhã ainda. Isto é, aprender. Aprender a viver, por exemplo.

Mesma manhã, 8h01

O Artistonitólogo acaba de dar um pão a um canito dos que cirandam pelo Hospital. E uma dose de manteiga à gata Benfica. Cão e gata sabem viver. Também eles. Sobretudo eles.

Mesma manhã, 8h25

ZA, invalidado por longos abus’anos de álcaro, amanhece no chão de madeira da enfermaria dupla reservada aos incapacitados de autolocomoção. Caiu da cama. Está enregelado. Por roupa única, a fralda descartável: parece um cristo mijado e frígido. Ajudo a levantá-lo do chão com o jovem HM. Pomo-lo na cama: bebé tóxico, cinquentão.

Fim da manhã, 11h44

PB, da Figueira da Foz. Toxinitólogo. Estoirou milhares de notas, próprias e do pai. Relacionou-se seis anos com “um amor que lhe chegou de Lisboa com a escola da droga toda”. Perderam a vida de um bebé de quatro meses. Heroína e coca defumadas como chouriços brancos. Miséria. Vontade de renascer, porém. O amor (ela) pisgou-se. Ouço a conversa entre P e J, ambos toxis. Ambos vivos.

Tarde, 14h39


(para Cesário Verde)



Ó poeta formoso ó dos formosos poemas
Luz do estrelado azeite leite do gás dos sistemas
Como raros raro foste luminoso alveolar
Língua nossa tua toda impossível de imitar.



Mesma tarde, 15h00

Com o retomado camarada de fevereiro passado, o CMS, conversas moles de lagartos solarengos. Eu, na esperança (dúbia) de poder passar o fim-de-semana em casa (Botulho, Tondela). A ver. A viver. A escreviver.

27/11/2005

O Cedro e a Lua - VII - 9 de Novembro de 2005

HSC, 9 de Novembro de 2005, 4ª feira, 8h38

Névoa densa e respiração fresca na manhã nova. Uma volta oxigiénica à volta do Pavilhão, abrindo e fechando as mãos, imprimindo bem os passos-sapatilhas, respirando fundo e bem. Uma tangerina e uma castanha. Um copo de água e um belo cigarro. AG vai-se hoje embora. AP foi ontem. Ontem, o Artistonitólogo fechou o serão cultural em beleza: depois do O’Neill, três temas de Charlie Parker & Companheiros (Gillespie, Smith, Coleman, Lester e Outros) na rodela do cêdê portátil + um soneto em puros decassílabos do grande Cesário Verde. Depois, cama. Agora, pronto para a quarta-feira.

Mesma manhã, 11h01

Altercação de dois doidinhos na cafetaria dos doentes, primeiro, e depois cá fora, por causa da (des)ordem na bicha para o café:
– Armados em enfermeiros ou a merda, querem ser atendidos primeiros qu’os outros.
– Chiu!
– Chiu?! ‘tou aqui ‘tou a usar as mãos!...
– Só se for p’ra me tocares ó bicho…
– Corto-te às postas, pá, ‘inda te corto mazé às postas!...
– Vai à cona à tua mãe…
– Isso era o qu’eu queria!
– Tens o cu maior q’a cabeça.
– Olha p’às costas, pá, não t’esqueças d’andar a olhar p’às costas…
– Mando-te mazé uma cabeçada na boca que ficas a cagar dentes uma semana e um dia.
– ‘tou aqui ‘tou a usar as mãos!...
– Queres levar agora ou daqui a bocado?
– Pode ser daqui a bocado.

Tarde, 14h25

À hora de almoço, visita rápida do meu irmão Fernando. Trouxe-me fraternidade, esta esferográfica-marcador de cor roxa-gel e dois livros. Um deles é o mais recente de Saramago, As Intermitências da Morte. O outro, de um autor cubano cujo nome está lá em cima no cacifo. Gostei da visita. Também, deve ser porque gosto do meu irmão. Agora, sol da tarde e mais Cesário Verde. Viva Cesário! Obrigado, Fernando.

Mesma tarde, 16h23

A má notícia que às vezes sou, torna-se pior com notícias como a de má hora que há minutos me chegou pelo amigo João Portulez, primeiro, e confirmada depois pelos amigos Adelino Mendes e Zé Gaspar – a do suicídio, ontem (ou hoje ainda, não percebi bem), do bom gigante Zé Marques. Sim, o Zé “Miséria” do Louriçal. Enforcou-se, não se sabe (nem interessa, agora) por que má ideia. Era grande na tamanhura e no coração. Matou-se, morreu. E eu que, há linhas-dias acima, escrevera “Viva a vida!”. Às vezes, não viva nada. Não, de todo. O funeral é amanhã.

Noite, 20h20

Ao fim da tarde, regressando de um copo de café na cafetaria dos doentes, reencontro com CMS, um camarada do primeiro internamento do Artista. É de Barcouço. S. trouxe-me Debaixo do Vulcão, do defuntalcoólico Malcolm Lowry (1909-1957). Lembrar, a propósito do grande escritor, o poema que lhe dedicou o também grande e enorme e imenso e gigante – e nosso – Carlos de Oliveira; ver Trabalho Poético. E uma revelação: um dos dois doidinhos altercadores referidos na nota das 11h01 de hoje era eu. Ou ele: o Artistonitólogo.

Mesma noite, 21h23

Não tanto as coisas que fiz nem as que pretendo fazer – contam agora, mormente, as que faço. Por exemplo, neste preciso instante, sim, isto, escrever. Depois, tomar chá e ingerir bolachas – mas no momento dele e delas: chá-momento, momento-bolachas. Depois-então-já: tostar na cama de sono o corpo. Dentro do son(h)o, resistir às imagens más, propiciar a floresta preta de dormir sem papões nem desamores nem raivas (ab)surdas. Fazer (por) isso, mas já. Parece-me um bom presente, até no sentido de oferenda.

25/11/2005

O Cedro e a Lua - VI - 8 de Novembro de 2005

HSC, 8 de Novembro de 2005, 3ª feira, 7h29

Sonhos insalubres acordaram o Ornitólogartista às 5h14. Levantou-se, derivou para a casa-de-banho e sentou-se sem produção para fumar um cigarro proibido pela gerência. Na volta, conseguiu reconciliar-se com o sono até às 6h40, hora a que se tornou escusado tentar o suborno de Morfeu. O camarada/camarata AP também já acordara. Barbeou-se, duchou-se, comeu uma tangerina, deu lume a RF, terceiro acordado. À hora a que a enfermeira abriu as portas do segundo piso, o cheiro a tabaco fê-la ralhar mansamente e sem remédio. O dia, no jardim, montara entretanto uma tenda fresca: ar-árvores, pipi-pipilar de penosos, o cheiro-brilho da nova luz, da nova batalha de horas, pães, doses de manteiga, cafeteiras pitingas, cigarros, O’Neill.

Mesma manhã, 8h00

Reunião geral dos doentes com outro enfermeiro. Ponto a ponto, homem a homem, falta sabão lá em cima, preciso de uma toalha, queres mudar de pijama para roupa civil, é preciso que as pessoas, sem nomear nomes, se habituem a tomar banho. AP confessa que retomou a sacra-vialcoólica mercê de um “roubo” que lhe fizeram da “morte de um netinho”. Assim dito, sem mais nem broas. A meio da manhã: “um netinho”.

Fim da manhã, 12h09

“Promovido a civil”: uso agora, por cromo-civil paradoxo, calças verde-tropa, sapatilhas pretas, camisola interior cinza, camisola exterior cinza verde. O Carlitos está aqui: dou-lhe um pacote de açúcar (tenho muitos, que guardo das bicas e das primeira e terceira refeições). Depois limpo-lhe a mão, os lábios e o queixo com o toalhete que traz amarrado ao pescoço. O Carlitos:
– Queu’a’nha’mãe…
Um velho mental-crónico que quer a mãe pelo fim da manhã, da vida. Muitos anos. Todos os dias. Açúcar.

Tarde, 14h10

Coincidências do carag’ato: a páginas 520 do O’Neill (Poesias Completas 1951-1986, INCM, 3ª ed. rev. e aum. , reimpressão de março de 1995) também se pressupõe um gato chamado “Benfica”. Mas a nossa do Pavilhão 3 é gata. E benfiquista mesmo.

Noite, 20h07

O’Neill todo lido. Oficiante (mas não oficial nem oficioso) desse republicano (e podre) reino chamado Literatura. Criou boas palavras novas, usou bem boas palavras velhas. Ou antigas. Dele recordarei aqui, em ponto de rebucitação (de rebuçado + citação, para brincar à maneira de Alexandre’le…):

“(…)

que a vida não é outra
senão a que fazemos
(e a vida é uma só
pois jamais voltaremos).

(…)

E que melhor pretexto
(quem o saiba que o diga!)
Teremos p’ra viver
senão a própria vida?”


E pronto: senhoras & senhores, meninos & meninas, voilá Alexandre O’Neill (1924-1986 e uns trocos).

24/11/2005

O Cedro e a Lua - V - 7 de Novembro de 2005

HSC, 7 de Novembro de 2005, 2ª feira, 8h10

Despertar e erguer às 6h59. Uma banana, um cigarro. Duche quente. Um copo de água, uma tangerina. Dois ou três poemas de O’Neill. Às 8h00, ala para baixo. Alvorada de foguetório de festa numa aldeia à vista. Noticiário na rádio e na têvê: merda sociopopular, e da grossa, em França; o cabrão corrupto(r) nipo-peruano Fujimori detido em Santiago do Chile; pesquisas chinesas para energia fotovoltaica; chuvas ácidas, cidades poluídas; mais um tornado contra USamericanos, desta vez nos estados de Indiana e Kentucky (Deus deve ser terrorista também, há-de “pensar”, por assim dizer, o burro-bush). Sol matino. Algumas nuvens esfarrapadas. A malta à espera do desjejum de café com leite e pão com manteiga. Moi, contentinho de fruta no barrigol. Brincadeiras entre o pagode. O internamento (o tédio) torna pueris homens descriados. Lembram-me a primeira frase que compus em latim, por obra e graça da maestria do meu explicador, o doutor Moura: “In agro pueri arborum fructos legebant.” (“No campo, os rapazes colhiam frutos das árvores.”) Este tem 55 anos, aquele tem 45. Eu, 41. Tudo na brincadeira. Bocas e palmadas. Ternas obscenidades.

Mesma manhã, 10h55

Há quem saia daqui com a promessa de ir a pé a Fátima se o álcool lhes não voltar às unhas e às beiças. Há quem volte aqui. Há de tudo, como na farmácia e nas grandes superfícies do senhor Belmiro Azevedo. Por mim, o Artista só garante limpeza/desinfecção/desinfestação por 2/3 semanas. Depois, a roda-viva (felizmente viva) de um-dia-por-dia, uma-noite-por-noite. Rever as filhinhas, retomar os amigos, o trabalho. Os livros, não é preciso retomá-los: eles vieram comigo, retornarão comigo. E não há-de ser preciso ir a Fátima, esse nome árabe que faz ajoelhar tantos católicos e tantas católicas. O que interessa é a graça deste sol de novembro, branco de ouro branco, nutridor de árvores e suas sombras japonesas. Reconstruo o pensamento, vivo interiormente a vida escrita de Camilo Ardenas. E também a de Luciano Décio Santo, embora menos. Sinto-me feliz por ter, antes de vir para aqui repousar e retemperar-me, entregado à editora do Rui Grácio o livro com a história do senhor Leal Casimiro e com os outros relatos crónicos. Viva a porra da vida, enfim.

Manhã finda, 12h46

O enfermeiro V., em reunião de terapia de grupo, falou da necessidade de perdoar (a)o passado. Tenho, realmente tenho, alguma(s) memória(s) a pacificar. Assim seja. Mas...

From what I can see
Of the people like me
We get better
But we never get well

Paul Simon

Noite de 7, 20h44
Não é uma lição nova
Mas uma instrução
Que se renova
Cada dia se conquista
Manhã cedo noite à vista.


Mesma noite, 21h02

(E com Paul Simon, ainda, em passagem de testemunho cantado para a Leonor e para a Teresa,

I’m gonna watch you shine
Gonna watch you grow
Gonna paint a sign
So you’ll always know
As long as one and one is two
There could never be a father
Who loves his daughter
More than I love you


fica tudo cantad’ito, filhas minhas.)

23/11/2005

O Cedro e a Lua - IV - 6 de Novembro de 2005

HSC, 6 de Novembro de 2005, domingo, 11h33

Domingo. J. foi-se embora para Matosinhos. Veio o pai buscá-lo. Bom rapaz: deixou moedas e todo o tabaco ao velho G., que passa a vida na crava. Dormiu muito, de novo, o Artistonitólogo. Comeu um pequeno-almoço lauto: cinco casqueiros com três triângulos de queijo e duas doses de manteiga. Duas chávenas de café com leite. Ao despertar, pelas 7h30, não havia água quente. O duche foi frio e bom. Depois do desjejum, o Artista dormitou estendido no sofá da sala da televisão. Depois, lagartou no terraço sob o guarda-sol. Está, de feito, um sol glorioso. Nenhuma brisa. Nem parece novembro. Viver nem parece difícil. Mesmo ao domingo, afinal.

Tarde de 6, 14h59

Uma sensação de corpo sujeito a pousio. Boa sensação. Leitura de Alexandre O’Neill (Poesias Completas 1951-1986, edição da INCM). Cigarros calmos, copos de café fraco mas aromático. Pão, batatas, peixe, carne. À noitinha, chá e bolachas. O melhor de tudo tem sido o descampado do sono: sem sonhos, sem fantasmas, sem batalhas, sem freguesia. O duche frio da manhã foi retemperador. O gabinete de enfermagem já chamou o electricista, que veio já e, com ele, o fluxo forte de água quente. Unhas dos pés e das mãos aparadas com vigor, higiene e geometria. Desodorizante, champô, sabão azulibranco, pasta dentífrica e elixir bucal. E O’Neill. (Dei um pão ao Carlitos, que, por vitalício do Pavilhão 2, tem direito a nome por extenso. E também um pacote de açúcar, que lhe administrei às doses na língua. E dei bacalhau à Benfica, que tem passado a tarde a lamber os bigodes noruegueses.) Falo sobretudo com AG., figura suave e civilizada de homem. É de Águeda, foi dando cabo da vida com vinho branco. Quer recuperar a vida e perder de alcance o branco. Tem sérias hipóteses de o conseguir. O emprego mantém-se, a família também. Trocámos endereços e números telemobilísticos. Trocamos palavras, somos vizinhos de cama: eu sou o H24; ele, o H23.

Noite de 6, 18h09

O domingo subiu alto com o sol. Repete a graça com a Lua a quarto crescente. Céu laminado de estrelas, terra estrelada de aldeias – pontos de luz que é possível coleccionar sem possuir, como aos amores de uma vida.

22/11/2005

O Cedro e a Lua - III - 5 de Novembro de 2005

HSC, 5 de Novembro de 2005, sábado, 8h59

O Artistonitólogo celebra em silêncio-só-conseus-botões uma noite bem dormida – de cabo-a-rabo, de fio-a-pavio. E mais: manhãzinha muito cedo, um céu sem um nuvem e com um sol. Passam hoje nove meses certinhos sobre o primeiro internamento do Ornitartistoólatra neste mesmo Pavilhão 3. Copo vazio, copo cheio. Rei morto, rei ressacado. Daria para ter concebido um bebé novo. Deu para isto – um ano novo tornado velho, um livro escrito e terminado (O Preço da Chuva, a sair nos princípios de 2006, talvez, na editora conimbricense Pé de Página). Daqui a pouco, pequeno-almoço. Depois, um cigarro, uma ida à cafetaria dos doentes (ornitólogos, hipólogos, cocólogos e demais fauna de neurónios escaqueirados). Viva a vida!

Mesmo dia, 13h55

De manhã, no regresso da cafetaria, o enfermeiro P. e o grupo de pijamas conversam sobre “juizinho”: não beber, não drogar, poupar dinheiro, ganhar saúde. Tudo sem grandes moralismos. Tudo em sossego, com o estômago e a boca acalentados pelo copo de café. Às tantas, F. sai-se com esta:
– Um vizinho meu deixou de fumar e começou a pôr num jarro as moedas que gastaria se ainda fumasse. Poupou poupou poupou até que comprou uma casa. Vai daí um dia a casa ardeu. Claro, aquele dinheiro já era p’ra queimar…
Os pijamas, enfermeiro incluído, riem-se. É história forjada, mas dá para a risota. Um dos nossos, menos dados a subtilezas anedóticas, ainda protesta:
– Mas isso é história!
– Claro que é! E depois? – contestamos todos.
E assim arde o Tempo. O enfermeiro P., bom rapaz (22 anos, só) ligou o computador portátil dele ao televisor (que é novo, não já a velharia chuvosa de fevereiro) para que possamos ver um filme em dêvêdê: Samuel L. Jackson, Peter Strauss, Willem Dafoe etc. Uma coisa cheia de (d)efeitos especiais. Assim chegamos ao almoço, cuja atracção principal é o empadão de atum. Mais pão, alface, maçã e água. A Benfica lamberá uma boa porção das sobras. E sombras faz a luz. O céu continua lavado como uma prata azul. Os eucaliptos e os cedros pintam-se a si mesmos em gravuras de cinco/seis metros de altura. Minutos para a ida da tarde à cafetaria. Continuo a ouvir os outros.

Mesma tarde, 14h43

No regresso do café da tarde, ainda com a bonomia tutelar do enfermeiro P. (jovem, calmo, humano), conversa sobre mezinhas e curandices populares. Por exemplo, a história de J., tóxico das Fontainhas (Matosinhos, Porto). Parece que teve papeira em pequenino. E a quem os hospitais com nomes de santos (António, João) terão sido incapazes de debelar a moléstia. O remédio santo ter-lhe-á chegado do próprio avô. “O Velho sabia Coisas”, garantiu J. Madrugada cedinha, mandava-lhe para dentro com broa de milho e aguardente (lhe a ele, avô). E assim passou além do Bojador dos 90 e tal anos de vida. Curou, parece, a papeira ao netinho mandando-o deitar, pondo-lhe em cima a canga do boi e botando umas rezas. A papeira de J. bateu em retirada. Maravilhas da tecnologia antiga. Não da tanga, mas da canga. Eu mandei, a propósito, uma piada:
– Comigo foi ao contrário. Tive a papeira em pequeno, mas só em grande é que me puseram a canga.
Os pijamas, enfermeiro incluído, riram-se. Chegámos todos sãos e salvos à Base de Ornitologia – Pavilhão 3. Seguiu-se o dêvêdê do Homem-Aranha.

Mesma tarde, 17h00

Um dos ornitalcoólogos borrou-se todo na sanita mais próxima da porta. Eu tinha ido dar cabo do meu mijo quando o fedor (que não Dostoievsky) me chegou pelo alto do muro comum que divide as duas retretes. Em aura cristiana, alertei a auxiliar L. para o cacacontecido. A senhora lá tratou do merdassunto. Li mais uma história da Highsmith, embora me não apetecesse por aí além. Já li muito melhor, sem comparação possível, embora aqui o tenha comparado, dela. Os outros livros estão guardados no saco, a que por enquanto não tenho acesso. Agora, é hora de cafetaria. Somos quatro, escoltados por L., uma enfermeira baixinha e gentil.

Anoitecer, 17h56

Dois assaltos bastaram. No café pós-almoço, J. assediou a empregadita da cafetaria com um “Dá-me o teu coração!”. E, bem-parecido, com barba no rosto de não aparentes apenas 22 anos, acrescentou:
– O bolo…
O bolo (o coração) era um palmiê. Os olhos da rapariga riram-se com aquela volúpia resinosa de fêmea cortejada. Poucas horas depois, no café pós-merenda, ela já lhe sorria um sorriso ímpar. J. acaba de me mostrar um papel com o número de telemóvel autografado a esferográfica azul pela moça. Todos os pobres de Deus escrevem a esferográfica azul. J. garante-me que não troca a “mulher” dele (a namorada, mas ele diz mulher com aspas para que eu sinta a seriedade de uma relação com cinco anos) por nada. É uma mulher do Norte, carago.
– Mas era gajo para cá vir abaixo a Coimbra dar uma volta a isto…
Não virá, claro que não. Já tomou duas porções do medicamento antagonista (ele não é orni, é hipo), sente-se mais lavado dos fumos da heroína e vai partir, 2ª, com o pai, para Bilbau, onde trabalham ambos. Mas tudo isto me rende um episódio precioso para o diário do segundo internamento. É uma não-história, mais bem dizendo, mas é das boas. Outras não-histórias vivas correm pelas alamedas e azinhagas do hospital psiquiátrico: são os internados vitalícios, trôpegos de pernas, pedintes manuais de cigarros e moedas para café; pássaros coxos, partidos bonecos vagamente humanos articulados por invisível ventríloquo – assim me semelham. Cristãos sem Cristo, loucos sem cura. Dormem ao lado, no Pavilhão 2.

O Cedro e a Lua - II - 4 de Novembro de 2005

HSC, 4 de Novembro de 2005, 6ª feira, 14h20

O Artista é admitido a regime de internamento completo antes da hora de almoço. A entrada coincide com o licenciamento por alta do grande amigo RM, que hoje completa as suas três semanas. A fauna humana restante – o costume. Por enquanto, só uma mulher. Em fevereiro passado havia três. Uma novidade boa: há uma gata. A mascote dos ornitólogos chama-se Benfica. É idêntica, mas em grande, à Agostinha, a gata do Artistonitólogo. O Tempo é outra coisa, no hospital. Feito de uma rotina medicamentosa, alimentar, sanitária – e, claro, reflexiva. O problema (a Doença) está dentro. A Solução, também. Permitir que o Tempo não doa tanto, dar-lhe Espaço. Fornecer-lhe Cabeça (mais) e Coração (embora menos). O Estômago, sem a frequência de copos & garrafas, trabalha como uma betoneira macia. Assim os dentes não doam. Leituras para o dia: Vicente Sanches (Última Vontade juntamente com Aforismos Acerca da Última Vontade, teatro da colecção dos Livros Cotovia), Javier Tomeo (Querido Monstro, adaptação teatral da novela Amado Monstro do Autor feita por J.J Préau, Jacques Nichet e Jöelle Grãs, traduzida pelo grande hispanista José Bento, também colecção da Cotovia); e ainda uma colectânea (já encetada em casa, no Botulho) de onze contos da Patrícia Highsmith (Sereias no Campo de Golfe). No saco, há mais: Sófocles, Bachelard, Mourão-Ferreira, O’Neill etc. no verso deste mesmo caderno, uma história manuscrita apenas começada, de que o Artista vai recolher apenas, em princípio, uma ideia (a do poster de futebol com os nomes dos onze jogadores, a linha completa dos titulares) para a nova história a manuscrever (mas já em construção) em torno da personagem chamada Camilo Ardenas. Há sol entre nuvens. Algum azul. O ar, fresco e lavado das chuvas da semana, é bom de respirar. Controlar sem ansiedade o tabaco. Ser mais esperto do que até aqui. Mais forte, menos de louça. Mais com (ou para com) a bonita idade de 41 anos e quase seis meses. Da tristeza, tirar o suco (para a escrita) e mandar fora a casca (pró caralho, nem menos). A ver. São quinze menos quinze, o que, se na aritmética dá resto zero, aqui um quarto para as três. Da tarde. Da lucidez.

Mesmo dia, 17h07

Dei leite da merenda à Benfica. Num copo de plástico da máquina da água. A tipa gostou, embora de início tenha cabeceado um pouco (à Nuno Gomes) por causa da quentura. Leite aguado, chilro como o sol de Bruxelas (imagem a utilizar no Camilo Ardenas), mas nós bebemos e ela, agora, também. Um tempo temperado, suave como um sabonete. Vê-se daqui uma parte da muita mata ardida no verão. Ou na “época de incêndios”, como lhe chamou, aliás com razão, um politidiota qualquer. Um correspondente estrangeiro aqui desterrado espantou-se, também com razão, da naturalidade com que os Portugueses têm “época de incêndios” como têm a natalícia, a carnavalesca, a pascal e a do raio-que-nos-parta-a-todos, povo merdoso que somos. A floresta sobrevivente (sobrevivente a este ano, ou “época”, pelo menos) continua linda, muito respiratória, de um verde agora tocado pela graça flava do outono. Caminho, respiro, vejo, escrevo. O camarada AP, de perto de Soure, é falador. Fez-se-me de recepcionista. Devo tê-lo desiludido um pouco.
– Já cá estive antes – disse-lhe eu.
– Ai sim, então quando? – quis saber ele.
– Em Fevereiro deste ano, de 5 a 18 – datei eu.
E ele, exultante: “Ah, mas eu estive cá há quinze anos!”. Reconheço a derrota com humildade, apesar de ser bicampeão de ornitologia no mesmo ano. AP conta-me depois que um irmão dele se matou na linha de comboio. Eu quis saber há quanto tempo (por exemplo, se há quinze anos…).
– Há já muito tempo. – diz ele. – Há quatro anos.
“Porra!”, penso eu. “O meu irmão Jorge não se matou, morreu apenas, vai fazer 20 anos em Maio próximo, mas continua a ser ontem. E eu com ele às costas. E este a chamar ‘muito’ a quatro anos. Quem me dera ser capaz de encaixar assim as coisas, como as encaixa esta gente diferentigual de/a mim. Quatro anos, num episódio de morte fraterna, é sempre agora. Ou não? Ou são exactamente quatro anos quatro vezes doze meses? Falo por mim, bebi tanto (também) por isso mesmo – por mim, não por ele. Ele não é (não pode ser) pretexto para uma degradação tanto e tantos anos afundada, afundante, espumada, espumante. Escre(vi)vamos os mortos, sim. Mas não os vivamos. A culpa não é deles. AP tem 56 anos, quase. Teria 51/52 quando o irmão (“sem necessidade nenhuma”, diz ele, sabe lá ele) foi caminhando no centro da dupla linha contra o comboio, que apitava desesperado, o freio no máximo desfechando chispas desesperadas.
– Esteve em Angola a fazer a guerra do Ultramar, foi coisa que o Diabo lhe fechou na cabeça, o genro e o filho ainda o puxaram para abrirem todos juntos um armazém, que sempre abriram, e vai ele depois mata-se sem quê nem praquê contra o comboio. Não foi debaixo, foi contra, ele a andar a direito, o comboio não se arredou porque não podia – diz AP.
Digo eu então:
– Se calhar, o teu irmão também não podia.
Ele fica a olhar para mim como se eu fosse maluco. Naturalmente devo ser, até pelo sítio onde escrevo. E por que escrevo. E que escrevo.

Mesmo dia, 19h59

Vicente Sanches lido, Javier Tomeo lido. Também lido um dos contos da Highsmith. Sanches: uma angustiosa confrontação político-religiosa. Tomeo: uma incursão (já tinha lido, há anos, a prosa, agora a dramaturgia) no domínio do (nem tão) absurdo; bom livro, boa peça – a de Tomeo. A de Sanches: notória vontade (aliás expressa pelo A. nas indicações dramatúrgicas) de peça-debate (ao vivo, com a plateia; no imo, com o leitor). O jantar, pontual, às 19 horas. Um (bom) peixe de pele negra com batatas cozidas e feijão verde. A gata Benfica refastelou-se com as sobras gordas que lhe levei. O pessoal assiste na sala-de-convívio a um videofilme requisitado aqui no hospital. Disseram-me que também há biblioteca ao dispor dos doentes. Segunda-feira, já vejo que volumes por lá estarão ao pó. Gostaria de lá encontrar o Debaixo do Vulcão, do colega ornitólogo Malcolm Lowry, rebentado pelo gin, parece (o Luiz Pacheco refere livro e autor em o Diário Remendado 1971-1975, que li entre anteontem e ontem). Também preciso de ler o Molloy do Beckett. AP foi de fim-de-semana. E depois deve ter alta na terça-feira. Já me convidou a passar pela aldeia dele para petiscarmos. “Com sumos e depois café”, salvaguardou. Disse-lhe que sim-se-puder. Destas coisas que se falam a bem nos hospitais e depois se dissipam na rotina da vida livre, ou civil, ou não-internada. O videofilme deles é o At First Sight, com Val Kilmer (que fez um excelentíssimo papel de Jim Morrison em The Doors, realizado pelo sempre contundente Oliver Stone) a fazer de cego e a Mira Sorvino a fazer de boa. Género “romance-drama” com final feliz (às escuras). Gostei muito do Kilmer-Morrison. Mas hoje não me apetece cinema. Ler, sim. E eu tenho mais Highsmith etc. Além disso, já vi isto na tv há uns anos.

21/11/2005

O Cedro e a Lua - I - Nota Prévia

O Cedro e a Lua é o registo diarístico do meu segundo internamento, entre 4 e 18 de Novembro de 2005, no Serviço de Tratamento de Alcoologias (Pavilhão 3) do Hospital Sobral Cid (Ceira, Coimbra). Por graça, chamo “ornitologia” à alcoologia. É piada pessoal, não ligueis.
Compor um diário não tem nada de especial. Mas expô-lo (sendo, para mais, de cariz alcoológico), pensando bem, para quê? Ou para quem? Na verdade, a pergunta sobrepassa o diarismo e atinge a geral literatura. Publicar (seja, em arte, o que for, realmente, para quê? Tenho esta teoria: para que o artístico exista de facto, depois de, de facto ou não, vivido. No meu caso-
-álcool, de facto-bebido.
Segundo internamento, disse. O primeiro decorrera entre 5 e 18 de Fevereiro de 2005. Já este ano, portanto. Fora o feliz culminar, por assim dizer, de uma longa e pedregosa ascese. Não tenho culpas a atribuir. Nem a nada, nem a ninguém. Ou se a algo, a tudo. E se a alguém, a mim.
Cheguei a Fevereiro provindo de uma amarga decepção sentimental e de uma amargurante desilusão pessoal/profissional. Para mais, via pouco ambas as minhas filhas, não por culpa delas nem por culpa das mães, mas pela (des)vida dita-literária que escolhi (e assumo, e carrego) para mim. De modo que saí do Pavilhão 3 a 18 de Fevereiro e aguentei a seco durante quase seis meses. Herói!
Paradoxalmente, as coisas começaram a correr-me bem desde então. Ofereceram-me trabalho como escritor de teatro e de matérias quejandas numa companhia muito bonita de/em Tondela, uma editora convidou-me para publicar um livro (aceitei, vai sair em 2006, espero), arranjei uma casa com lareira e gata e tudo. Ah, e retomei a companhia do meu amigo Jameson (irlandês, tripla destilação), um fulano de pele de vidro verde e olhos cor-de-ouro que, tomado em jejum, nunca desilude, bem antes pelo contrário. Antes que ele, Jameson, ganhasse o que eu perdesse, voltei a Coimbra. Ao Pavilhão 3, sim. De onde agora regresso com este Cedro e esta Lua. Para que se tornem definitivamente reais. E para vós.
À vossa saúde.


Botulho, 20 de Novembro de 2005

Canzoada Assaltante