29/10/2017
27/10/2017
Escrevo sempre a mesma coisa, ora vejam - Rosário Breve n.º 527 in O RIBATEJO de 26 de Outubro de 2017 - www.oribatejo.pt
Escrevo sempre a
mesma coisa, ora vejam
1 (2006) – Antuzede, o Sol mais total deste mundo. Tenho quatro anos. Há
funeral de alguém velho, alguém da terra do Pai. O Pai leva-me. Recordo a
totalidade pânica do Sol. Em descampado (ou em esta mesma Praça, tantos anos
depois’antes), a urna – negra, toda feita de sombra. A par do achado (sob um
cartão) no Pátio, é a minha primeira – quiçá definitiva – recordação. Isto tem
de estar a acontecer em 1968. Duvido de que possa ser já 1969. Comporto-me como
o principezinho que sou, filho tardio de um homem de 51 anos, à data do
funeral. Tenho eu hoje 53 feitos, sou mais velho do que essa versão do meu Pai.
Como é que isto pode (não) ser, verdade? Verdade. Mentira. Algures nessa cabeça
de quatro anos há já sinais desta de 53. Certa afinal serenidade ante o
descalabro da morte individual, o escândalo dessa lei não votada nem vetada.
Certa concertação resignada ante a totalidade, o absurdo, o corriqueiro, o é-igual-para-todos. (Muitos anos
depois’antes, aqui voltarei para inumar José, pai de Joaquim Jorge, Carvalho.)
O Tempo, como as medusas feitas de água translúcida, transparecendo-se de si
mesmo em volutas de luz + água + resíduos saibro-argilosos, cinema de um só
bilhete para a eternidade do Domingo. Nem alegria, nem tristeza, nem outrossim
agonia ou júbilo – mas tão-só uma espécie, não sei, sei lá, de sideral
serenidade baqueando de pau, bola & ponto ante as bancadas desertas, sobre
rala relva, que aliás o descampado do Morto-de-1968 não criava.
2 (2017) - Era uma lembrança veemente da primeiríssima infância: uma praça
árida cujo chão de terra aparecia queimado sem sombra nem clemência pelo sol
vertical de Junho; os cangalheiros haviam pousado o caixão, limpavam os rostos
com grandes lenços brancos; o morto esperava a retoma sem o mínimo queixume; as
mulheres eram perfeitos corvos de um negro quase azul, como o de certas noites;
e ele não podia, então, ter mais de quatro anos. A lembrança não era equívoca:
o funeral continuava a ter sido na aldeia natal do Pai, que o levava no
préstito pela mão do lado do coração. Não se tratava, por isso & não ainda,
do funeral do Pai. Era o de um homem que já era homem quando o Pai era menino.
E então, num golpe cerce, passara meio-século.
A
lembrança não era apenas veemente mas assaz recorrente ainda. Não lhe doía nem
o animava – era como o nariz a meio da cara sem ter de pensar nisso para que
continuassem a existir ambos: ele & seu nariz; a lembrança & ele. Era
também como o funeral do Pai: o funeral passara; a morte do Pai, não. E mais
isto: aos doze anos, ocorreu-lhe de repente (também num Junho inclemente de sol
incendiário) que o Pai poderia morrer um dia. Tal eventualidade escandalizou-o.
Estava no quarto da casa paterna. Brincava com lápis-de-cor e calendários,
arredondando os dias aniversários da Família com cores diferentes: a Irmã a
cor-de-rosa; o Primeiro-Irmão a roxo; o Segundo-Irmão a castanho; o
Terceiro-Irmão a verde; os Gémeos Quarto & Quinto, a laranja &
encarnado; e o dele a amarelo; o do Pai, a azul; e o da Mãe, a mesma rosa da
única Filha. Então, quando azulava o 10 de Abril paterno, a possibilidade de
lhe morrer o Pai. E o baque gástrico: como se o coração tivesse passado a morar
no estômago. Abandonou brincadeira & quarto, saiu para a torreira solar que
deflagrava no pátio, deu água aos cães antes de os desacorrentar, foi com eles
para o monte colher os espargos do esquecimento e o caule do funcho que uns
poucos anos depois lhe haveria de perfumar, escarchando-o, o anis da orfandade
adulta.
Tais
lembranças tornaram-se ora crónica de jornal. A vida tornou-se Outubro – mas a
inclemência solar é a mesma. Tenho a boca a cheirar a funcho. Antes fosse a
espargos.
19/10/2017
Fora, Pedro! Bem-vindo, Tomé! - Rosário Breve n.º 526 in O RIBATEJO de 19 de Outubro de 2017 - www.oribatejo.pt
Fora, Pedro!
Bem-vindo, Tomé!
Ando
há tempos para V. dar conta de dois livros intimamente ligados a Santarém cuja
leitura fiz com zelo, lápis, agrado e proveito. Ainda não vai ser desta. E
ainda não vai ser desta porque a chaga incendiária – que nos mata tanta gente,
nos destrói tantas habitações, nos arrasa tantas matas e nos pulveriza tantas empresas
– é a recorrente e implacável temática de cada dia, semana a semana, mês a mês.
Pus-me
a odiar São Pedro, coitado do barbudo das chaves-do-Céu.
Na
minha mocidade (e na Vossa), as estações eram quatro: e começavam à hora
marcada do dia certo. A Primavera existia, vinha no bico das andorinhas, o
arvoredo rejubilava, a temperatura era suave & adequada. O Verão
amarelejava de grandes fenos, extensos trigais, fundia o azul do céu no azul do
mar, os rios ainda não eram fossas pecuárias. O Outono? Era todo Vivaldi:
revoadas de folhas revoluteando como arcadas de violino, havia o prazer das
luvas de lã, as botas de borracha pelas ruas de terra sem macadame. O Inverno
era frio conforme a competente e obrigativa disposição legal desse tal São
Pedro que, naqueles bons tempos, trabalhava bem & devagar. Tudo isto deu o
berro. Tudo isto ardeu.
A
estiagem prolonga-se indecentemente há meses de mais. Em plena segunda metade
de Outubro, a brutidade solar, sem ozono que superiormente a estorve,
esturrica-nos a nossa própria sombra, que, pelo chão, feita carvão, se
esbraseia mais do que nós até. É uma coisa intolerável, este calor sem freio
nem calendário. É um túnel de fogo sem água ao fundo. E o imbecil do Trump a
rasgar acordos pró-climáticos. E o aqueci/esqueci/mento global. E os glaciares
a virem por aí a baixo feitos sopa. Porra, porra, meus senhores.
Como
poderia eu, pois, cronicar-vos a mote das minhas leituras pró-santarenas?
Livralhada agora, agora que por todo o lado só se lê, vê & ouve que “Olha, subiu o número de mortos; olha, mais
uns tantos desaparecidos; olha, os feridos não param de aumentar…”? Ná,
leiturices para ninguém.
Eu
exijo que chova como deve ser. Estamos em Outubro, catano! Quero o frio que nos
é devido em Novembro para podermos matar & escorrer com limpeza e sem
mosquedo calorífero & putrefactor o belo porco enquanto roemos a bela
castanha assada – ou cozida com funcho.
E
olha, ó Pedro tão pouco São, vê se te reformas e dás lugar a outro. Olha, dá-o a
São Tomé, por exemplo, que só haveria de crer
numa política territorial anti-fogos quando houvesse alguma para ver.
12/10/2017
(f)Actos da minha vida - Rosário Breve n.º 525 in O RIBATEJO de 12 de Outubro de 2017 - www.oribatejo.pt
(f)Actos da minha
vida
1 Descalço, saltei
do muro para a banda do monte, cortei-me no pé direito, sangrei muito – e ainda
sangro. Não singro, mas sangro.
2 Abraçava os meus
cães & os alheios, beijava-os no rosto, sentia deles o frémito humano,
olhos de quem entendia o que se lhes dava: como tão pouca gente-gente entende.
Ou é beijada.
3 Aprendendo a fumar
(às ocultas do entardenoitecer, encostado ao portão da quinta), volvi-me, até
estatu(t)ariamente, uma imitação de adulto. Continuo ambos: fumador & simulacro.
4 Os mendigos
batiam-nos à porta muito delicadamente. Se era meu Pai a atendê-los, tinham
menos má-sorte. Se era minha Mãe, pobre ela também, tinham boas palavras e não
mais que cinco tostões. Se era eu, aprendia a ser delicado no bater às portas.
Até hoje.
5 As raparigas:
deixando de ser meninas, obrigaram-me a tornar-me rapaz. Em paz elas & eu,
agora.
6 A Muda dos
Tremoços: esperta, ladina, pobre – mas sobrevivente, criadora de gente, de si
mesma banca & fruto & sal & tostão.
7 O Leandro
Jardineiro: bêbado, blasfemo, praguejador, admoestador, terror das crianças –
um vero santo católico, portanto.
8 Na vertical, era,
naquela altura, um colosso: seis pisos de armazenamento industrial. Um deles,
de botijas de gás. Deu-se o incêndio. O povo foi ver. Eu também era povo. De
súbito, a explosão: foi a nossa Hiroshima. Mais de quarenta anos passados,
continua a ser o raso chão a que se viu desfeito. E nós japoneses, por assim
dizer.
9 O sr. Eduardo da
Rua do Leitão que morreu na linha: vinha apeado da bicicleta para a travessia,
deixou passar o primeiro comboio, não contava com o segundo. O povo foi ver. Eu
também era povo. Aquele lençol da mulher-guarda-da-linha guardando o mistério
do corpo, a escandalosa rosa de sangue florindo o pano: inesquecível floricultura.
10 A minha Irmã, de
blusa verde, menina & moça qual rouxinol-bernardino, à janela. Sem pose,
alheia ao fotógrafo: rosa verde, antítese daquela que vi no lençol da morte
ferroviária.
11 Naquele tempo
infante, os Verões não eram a calamidade pública que hoje são. Os Julhos eram
passados na Figueira da Foz. A Mãe arrendava a mesma casa. Aos fins-de-semana,
o Pai reunia-se-nos. Isso não volta. Eu não era, então, a calamidade privada
que hoje sou. Mas a Mãe era o Verão. Em pessoa. E é ao sol dela que escrevo
quanto escrevo. O Pai chega sábado.
12 Linda como uma
conspiração de açucareiros, aquela Maria dos meus dezassete anos embebedou de
clorofila a incipiente árvore púbere do meu coração. Depois, rachou-ma em
cavacos imprestáveis até para outros lumes. Habituei-me a sentir-me embebedado.
Por Ela. Sem Ela. Contra Ela. E contra mim, em minúsculo pronome.
13 Os Irmãos: seis,
todos mais velhos – ou, por assim dizer, os meus mais recentes & mais
vitalícios antepassados.
14 A Minha-Rua: era
um país. É hoje um desconsolado consulado de marcianos que não falam a Língua
nem se lembram dos senhores Nunes, Catarino, Gonçalves, Velindro, Pimentel,
Ribeiro, Alcides, Pereira, Morais, Sério, Botelho, Alfredo, Sacramento,
Carvalho, Abrunheiro.
15 Quando chovia: o
cedro do meu prédio semelhava uma labareda negra de verd’outrora à Van Gogh; as
mulheres zumbiam no recolher à pressa das camisas crucificadas do estendal; o
senhor Carlos da taberna-carvoaria cainhava gemebundamente: “Estava-se-mesm’-a-ver-qu’ia-chover-estava-se-mesm’-a-ver-qu’ia-chover”;
e o cedro do meu quintal era o senhor Carlos a cainhar mas em versão Vincent de
cinema-mudo.
16 As Fábricas:
morreram todas. Corrijo: mataram-nas. Foi então que vieram os marcianos. E foi
então que veio a outra Língua, que de nomes antigos nada sabe nem a cedros à
chuva entende, quando o céu chove como a olhos acontece, certas vezes. Ou a
cães, quando beijados.
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