Intervalo(s) à
beira-rio
0. Isto que nos leva do nascer ao morrer é tão-só um
intervalo entre nada e coisa nenhuma. Posto isto, julgo termos reunidas as
condições para haver mais calmex na
mioleira. Andarmos de coração de cavalo num peito de periquito, hum, não me
parece assisado. O mundo já é doido q.b. sem precisar do nosso subsídio. Isto é
paleio de velho, eu sei. Todavia, firmo-o e afirmo-o na mesma. Tenho aprendido
alguma coisa à beira-rio.
1. O Fred. Bateu com a porta. Era competente, era
dedicado, era assíduo, era pontual, era capaz, era interessado, era o Fred com
quem se podia sempre contar. Mas era empregado. Tinha colegas de maior
antiguidade. Colegas daquele tipo de instalados na própria mediocridade, de
cientistas do “ando-há-muitos-anos-nisto-a-virar-frangos”,
militantes do “olha-me-agora-este-ciclista”,
práticos do “ai-que-cheiro-ao-leite-deste-caramelo”.
Dariam autarcas modelares, os ex-colegas do Fred. Talvez ainda dêem. Em Outubro
que vem, se vier.
2. A Vanessa. Enverga unhas de gel escarlate que fazem
dela a caricatura da pomba burra. Arqueia o mindinho quando chupa, ai, o cone
de gelado. Era para ter ido para enfermeira mas agora a 4.ª Classe de
antigamente já não chega para tanto. E no entanto ela lê muito, na família
gabam-lhe muito o vício, lê tudo o
que for códigos misteriosos, segredos do Vaticano, cenas proféticas & demais pisca-olhos tipo Rodrigues dos Santos.
Ainda tentou gostar dos pastelões históricos do Moita, mas ainda hoje confunde
os Távoras com o gajo das notas de 500. Ou com aquela tia Ferreirinha dos bailes cor-de-rosa ou coiso ou com’é qu’era.
3. O Anselmo & a Laura. Casados desde aquando mataram
o Rei. Ele tem uma colecção de saquetas de açúcar muito jeitosa. O problema foi
nunca ter tirado o açúcar das saquetas, modos que a garagem dele é género Pequim
versão formigal. Ela, sábado-sim-sábado-não, vai-lhe ao expositor com um spray
daqueles tipo casa-e-plantas. Até à segunda-feira seguinte, Pequim torna-se
centro histórico de Santarém depois das sete da tarde. Mas lá são felizes à
maneira deles. Dali não vem mal ao mundo.
4. O escritor Júlio Diniz. Mentirosão. Em parte alguma há
gente tão boa como sequer até a piorzinha dos livros dele? Não há. Penou e
finou-se daquela pulmoneira, coitado, depois de muito assobiar sangue. Eu ainda
disse à Vanessa que o lesse um bocadito. Qual quê. Não tem cenaça erótica
obrigatória à Miguel Sousa Tavares nem pornochanchada p’ra divorciadas tipo sombras-de-grey. Para mais, era do Porto
mas sem caralhadas, o que é no mínimo contranatura.
5. O Jolly. Cão do Anselmo. Tem sarna. Coça-se com a pata
esquerda de trás num frenesim de bêbado a tentar ligar a motorizada. Deve andar
já nos seus dezanove anos. Em idade de cão, e com licença ao respeito, isto
fá-lo, muito mais ou menos, contemporâneo em nascimento do passamento do tal autor
das Pupilas e da Morgadinha. (– De quem? – grunhe
a Vanessa enquanto lacra o dedo dos piretes.) O Jolly é um artista do bocejo.
Abre aquela bocarra de céu preto até pontos de se lhe ver por dentro o acordeão
das tripas. A língua explode em sonho molhado de solteirona. É maravilhoso.
Para mim, o bocejar do Jolly é maravilhoso. E é maravilhoso porque só ele, e
mais ninguém, percebe que, quanto e como isto
que nos leva do nascer ao morrer é tão-só um intervalo entre nada e coisa
nenhuma.
O
problema é que depois o programa não segue dentro de momentos, como se via
na televisão daquele tempo em que a mera 4.ª Classe era mala-aviada para
trabalhar ao pé dos médicos viradores de frangos.
2 comentários:
Sentado num café em Oslo, deliciado com leitura da crónica. Vc escreve das melhores em Portugal, todo o elogio é pouco.
Quanta gentileza, Soliplass. Muito grato, fico-lhe muito grato.
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