Um jantar românticochon
ou
Crónicóinc
1 Extravagância rara
mas perdoável, a minha Senhora & eu fomos, por uma destas cálidas noites do
corrente Estio, jantar fora. Andáramos meses amealhando moedas esquecidas. A
hora boa era boamente ora. Lá fomos, carregadinhos das moedas.
Ampla,
a esplanada era toda de távolas amarelas com réclame ao chá gelado da moda. Derredor, falava-se muito francês
com sotaque de Alpiarça. Hordas gordas pastavam com afinco. Tudo entrava à base
de azeitonas roídas de coentros alhados e rijinhas ao dente, queijinhos de
saudades do da Serra, pâtés de
sardinha moída e/ou de atum cirrótico. Atafulhadas de vaporosa legumagem,
travessas-inoxes exclamavam ricas
fumegações de cozido não-pobre: unha, costela, morcela, linguiça, orelha,
farinheira, pesadelos tudo do maralhal islamita. Bêbedas de vinha-de-alhos,
caçoilas de barro preto chanfanavam capitosamente o ar nasal. Nacos de
bacalhau, espessos como dicionários do bom tempo pré-AO/90, rangiam fofuras
ébrias de azeite. Garoupas & robalos decapitados rogavam tão-só, no que prontamente
eram deferidos, que os imolassem sobre cama de arroz-de-espigos levado ao
forno. Míseras delícias, enfim, desta vida de uma-noite-só-por-ano, que uma
noite não são dias. Estar vivo era quanto bastava para ser um bocadito feliz
sem remorso. Foi então que.
2 Foi então que se
deu aquilo dos porcos. Estávamos todos tão bem da vida como parágrafos abertos
e fechados em torno de um segredo bom. Mas então – os porcos. Passou-se que uma
viatura de transporte de animais vivos estacionou à face da esplanada. O frete
era de suínos-recos-javardos-grunhos-tós. Uma caminéte de porcos, pronto. E de pronto o ar se saturou do pungente
perfume da merda mais viva, mais penetrante, mais perfuradora & menos
tolerável da nossa vida. Nossa, de todos. Senhoras começaram a gasganetar a
bola da mastigação. Criancinhas ficaram de olhos húmidos como estrelinhas do
Natal. A minha Graça começou a dizer mal do casamento que fez. E eu esfreguei
as patitas de pateta contente: (“Já tenho
crónica, caraças! Já tenho alegoria, carago!). E era que tinha. E é que
tenho.
3 Tenho, tenho – esta
assim, quereis ver/ler? Sei bem que quereis. Cá vai: a risível mas triste
historieta do nosso (meu & da minha Senhora Esposa) jantar romântico é
muito cotejável ao que ali por bandas de Torres Novas em má-hora acontece. Mais
explicitamente: naquele afluente do Rio Almonda a que por triste ironia chamam
Ribeira da Boa Água. A diferença entre o meu jantar à beira de porcos parados e
a desgraça criminosa daquelas paragens está nisto: no meu caso, os porcos estavam
quietos; no caso do Almonda & demais afluentes do pobre Tejo, os porcos não
apenas se mexem como agridem as pessoas de bem que vêem a Natureza não como
aterro ou esgoto mas como Casa de Todos. Está dito, está dito: e nas fuças dos
porcos bípedes, covardes & covardes & porcos.
4 Moral da alegoria?
Nenhuma. Nem tirando o O a alegoria
pode dar alegria. É muita tristeza
junta. É muita impunidade à solta. É muito ganancioso sem uma cadeirita de
ferro pela corneta abaixo. Até que um dia o Diabo se lembre de lhes ser bom.
5 Por falar em Diabo,
o diabo do porqueiro lá comeu felizmente depressinha (tinha vindo só para uma
bifana no pão com um quartilho de branco-de-cozinha) & cá nos desamparou a
loja. A vicissitude mal-odorosa refez-se, rarefez-se &desfez-se. Pagámos
& desandámos. Vim para o carro com um sorrisito mefistofélicozito. E a
minha Graça assim p’ra mim: “Já tens
croniqueta, malandrim!...”.
E
era que tinha. E não é que tenho?
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