Crónica
ourives
I.
Não há razão para euforia. Há razão para
contentamento.
A euforia é bebedeira dos nervos. O
contentamento é uma vindicta mansa, lúcida, avisada.
Posto isto, há que apurar se:
1) a Esquerda existe (mesmo);
2) a Esquerda presta;
3) a Direita, cumprindo o verbo em 1),
não logra tão-depressa o verbo em 2).
Trocadilhando a preceito, a Esquerda tem
de ser destra, por isso mesmo que a Direita é sinistra. E ainda: quanto mais a
Esquerda se adestra, menos a Direita nos amestra.
Pronto – esta parte já cá está & já
lá mora. É como no testemunho do próprio: o gigante olímpico (e muito nosso)
Carlos Lopes, ao atingir a meta de ouro da maratona de Los Angeles/1984,
exultou consigo mesmo través este pensamento definitivo: “Esta, já ninguém ma
tira!”.
Escrevo pouquíssimas horas depois do
ocaso dos pífios PàFistas. Alerto:
não me/nos basta que o primeiro-ministério mude de mãos – o crucial é que mude
de rumo.
Que, paulatinamente embora, nos devolva
a todos algum manuseamento de moedas, algum acesso a víveres, algum retorno ao
trabalho que compense cada final de dia.
Que cesse de des-Educação. Que deixe de
propiciar a in-Justiça. Que não mais privatize ao desbarato o pan-Património.
Que comece por não acabar com a Saúde. E que, entre muitas outras urgências,
deixe de encarar o Trabalho como uma mania dos mal-remediados e como um estorvo
dos colossos empresariais, passando a tê-lo em conta & medida como direito (até
moral, até social, até cívico, até solidário) dos que não nasceram naquele tipo
de berço feito daquele tipo de ouro que só pode vir das roubalheiras
hereditárias.
Do caruncho
de que é feito o pau do ainda supremo magistrado, temos dito & por
consabido todos.
Assim seja.
II.
Chamamos “frio” ao arrefecimento que,
naturalmente pois que natural, vem sucedendo ao bondoso & cálido Verão-de
São-Martinho. Não sabemos o que dizemos –
frio, isto? Só os proscritos que
portam pouca & fraca roupa, só os despejados de casa, só os que fantasmaticamente
povoam a frigidez das ruas e o relento das noites sem porvir – só eles podem
carpir a penitência baixo-centígrada da quadra. Nós outros, abonados de sobretudo,
inquilinos de furtadas águas em fogos de tijolo, não. A sociedade de consumo
iludiu-nos, mentiu-nos, despojou-nos. Certo estoicismo que foi das gerações
nossas antanhas faz-nos falta. Não falo de, salazarentamente, louvaminhar a
escassez, honrar a pobreza, adorar a miséria, venerar a tesúria – falo de,
querendo, fazer mais com o pouco que nos é presente. É neste fio de pensamento
que chego ao miúdo do iPad a quem
roubaram o livro. Às pessoinhas
frivolizadas por revistecas sinónimas de trampa multicolorida e por televisões
estúpidas como a morte. Aos pobretes-mas-alegretes de espírito que repetem as
argoladas autofágicas & suicidas do Passado porque o não conhecem: nem de
ouvir falar, nem de querer ouvir falar dele. E ao meu Benfica, Farol da
Humanidade Desportiva, não menos do que Zeus do Olimpo do Coice na Bola, que,
perdendo três-em-três na mesma época ante o seu (aliás único) Rival, me tem
acidulado as entranhas mentais e as pregas intestinas. A mim e a mais 6+6+6
milhões – e toda a gente sabe que 666 é o número místico da Besta. Porque,
enfim, perder com o Sporting é o diabo. E o Diabo é que é frio mesmo.
III.
I, II, III, pim, pam, pum – chegado é o
momento do remate/roda/pé. Este: duas vezes grafei supra o substantivo ouro.
Da primeira vez, foi ardil estilístico: em “meta de ouro”, queira ler-se a medalha
daquele metal precioso com que Carlos Lopes tão altamente subiu todo um Povo –
mais precisa e mais historicamente, a 12 de Agosto de 1984. Tínhamos nós todos,
então, coisa de 20 anos.
Da segunda vez, foi estilizado truque
também – mas a responsabilidade oratória é da proverbial sabença popular
relativa aos bem-nascidos, materialmente falando. (Mais vernaculamente, “Quem não rouba ou não herda, não vale uma
merda”.) No meu caso, “berço feito
daquele tipo de ouro” é vilipêndio oriundo, talvez, da minha inveja de
bêbados e de borrachos que nascem com Deus por os baixos. Mas não importa.
Importa é que saibamos distinguir o ouro
que vem do muito trabalho sério, honroso & honrado (cf. toda a carreira de
Carlos Lopes) e o que é mera usurpação, em e para proveito próprio, do trabalho
dos outros (estás a ouvir, PS?).
De resto, calo-me em voz alta: é que, a
12/8/84, Lopes era Portugal. Mas nos outros dias, peito-de-leão de leão ao
peito, era Sporting. Era, era.
E só isso é que me arrefece a euforia.