27/08/2015

Rosário Breve nº 420 - in O RIBATEJO de 27 de Agosto de 2015

Uma flor para Dezembro

Desce-se por uma vereda que serpenteia loteamentos baldios. Lixo plástico de um e de outro lados da senda: coisas arremessadas dos raros carros que por aqui fumam gasóleo. Há um olival esquecido enferrujando à Lua, parece prata encarquilhada. O Governo procede a roubalheiras calculadas e calculistas, mas o Agosto é de festejos, de foguetórios, de pessoas drogadas de sardinha & carrascão, não posso passar o que de vida me resta a causticar o inatingível, que é remediável mas que os Portugueses tornam e querem irremediável com o voto por clubismo.
Posso acabar de descer. Os semáforos, como jóias volúveis, piscam passagem, interdição, prudência. Atravesso no encarnado à Che Guevara e à patrão como o Licor Beirão. Ao cimo da ladeira, um hiper: formigas humanas rodam-carrinham víveres tipo marca-branca, no estacionamento carros esbeiçados uns pelos outros como amantes desavindos, arrumadores hepáticos que esbracejam à maneira de Cristos despregados de uma Cruz cravejada a seringas. O Governo pune tudo e todos, mas há sempre o toiro bravo, o pimento no carvão, o organista de kizomba, as marlenes de coxas gordas como insultos de sebo, a população de péssima saúde oral cariando o ar da respiração colectiva, os televisores estupidificando Cafés, Salas-de-Espera, Centros-de-Dia.
Subo para uma zona chamada Casal Ferrão, território de um Amigo que desconfio anda a escrever um livro tanto sobre o Ferrão como sobre o Casal. Há uma gasolineira com lavagem-auto. Vazia como um sonho acordado de pessoa com Alzheimer. Circundo-a sem esforço, passo aos pés do prédio onde no século passado morou a Cecília, uma que era bonita e se casou aos dezoito anos com um gajo esquisito que deve fazer parte do actual Governo, só pode, ninguém podia deixar por ali uma bicicleta ou um vaso de sardinheiras que não levassem logo sumiço.
Adiante, há um desfalecido estirado no chão, deve ser da bebedeira vascular cerebral, acontece por aqui muito, o bagaço é a quarenta cêntimos, também esperavam o quê, o INEM tem baldes com fartura.
Olho para todo o lado em demanda de alguma coisa cronicável, mas nada: na pastelaria da Paula Marreca as bolas-de-berlim de anteontem estiram línguas de pus de que até as varejeiras têm nojo; na caixa do transformador da luz os rostos vítimas de necrologia pasmam de anonimato com duas datas e muitòbrigadinhos a quem se dignar comparecer ao desperdício de velas; e o Governo vai a votos e não há-de perder por muitos porque o gajo-a-seguir e os próprios cartazes não se entendem. Cheira tanto a sétimo-dia, que a própria graxa dos meus sapatos chia a finados, é uma chatice mas pronto, a vida é assim, sobretudo no stândér do Anacleto, que vende mais matrículas falsas do que carros verdadeiros, a gente sabe mas não bufa, com o anterior Governo fizemos o mesmo e moita, com o próximo faremos o mesmo e carrasco.
Acampo no Rodrigo dos Leitões, que já não é do Rodrigo mas do Anacleto e que já não despacha leitões mas frangos tipo chiclete assados ao pé da arrecadação das botijas de gás, ando farto de os avisar, ao Anacleto e à ucraniana de sotaque goiano que ele arranjou numa espelunca de alterne, por causa da rebentação sem ser atlântica, mas moita mas carrascão.
Às tantas, telefonam-me mas é engano como a minha vida quase toda, tirando a que falta. Faço de conta que do outro lado não desligaram e vou por aí a atirar grunhidos discordes como o Octávio Machado, vocês sabem do que não estou a falar.
Nisto, faz-se noite e eu perdido-da-silva sem saber em que cidade estou, sei que deveria ter mandado a crónica ontem mas é que me fazem saber que a minha rica sobrinha Dani vai ter em Dezembro a Carolina Jorge Abrunheiro Zuzarte, o marido é Nuno e muito bom rapaz, gosta dos Monty Python, o casalito tem o John Cleese em poster na sala-de-estar em formato de ministro dos silly walks, é verdade que lêem Dan Brown mas a minha felicidade é tanta, mas tanta, que até isso lhes perdoo, lá vou eu ser tio-avô outra vez, sinto-me inflacionado, mais de éter do que de matéria carbónica só resgatável pelo crematório, o Governo não lixa tudo, há coisas de que até o Diabo se esquece, sobretudo se a quarenta cêntimos, sobretudo vindo o Natal tornar-se uma Carolina Jorge flagrante e fragrante como uma rosa de saúde.
Assim seja.

21/08/2015

A Condição Litoral – versos turísticos para crianças antigas (revista e republicada)






A Condição Litoral – versos turísticos para crianças antigas



(Um dos amores invencíveis da minha vida é a cidade marítima que se dá ao mundo com o nome de Figueira da Foz. Fui feliz nessa terra feita de água e de luz. Justo é que estes versos, dela tendo vindo, para ela sejam.)

Manhã de 9 (I) e tarde de 8 de Outubro de 2007 (II e III).




I

Quando de novo formos a ver o mar
que ele lá esteja é tudo o que peço
pouco pedir não é menos ter
se a nós ao menos nos tivermos.

São alguns gestos da claridade mesma das praias
um copo de água na mão é uma bandeira de chuva
descalços pelo areal tocamos das esferas a música
de antes as gerações viveram tudo quanto viveremos.

Palacetes e casebres da mesma areia erigidos
iguais anseiam todos por praia voltar a ser
ao longo da que maravilhosas coxeiem as crianças
como gaivotas pequenas como grandes (n)aves.

Retornemos à frescura dos bazares miniaturais
da conventual praça onde as sacerdotisas peixeiras
oficiam salmos e salmões e o mitológico polvo
das profundezas da alma onde a memória nada.

Não podemos estar sempre apenas aqui
por nossa casa vazia correm crianças transparentes
somo-las repetidos nos espelhos adúlteros
murchando sem iodo no estanho tóxico.

Não abjuremos a condição domingueira do desejo
lautos farnéis conciliemos em seira de esparto forte
e o ar solar em profundos haustos altos bivalves bebamos
resgatada a botelha da molusca sombra fresca das rochas.

Ao mar me portes de volta muito pois muito
tenho eu enfraquecido de arbóreo mineral langor
sem outro vit(r)al transporte que este dos versos
tossidos manhã muito cedo em enxuta pastelaria.

Que o vento litoral nos accione em levitação
como a panos docemente enforcados em arame
desfraldadores das acústicas vozearias da viração
e dos transcoloridos hologramas de barcos ao longe.

E muito morramos escalando-nos nus deitados
do homem dos gelados a voz vinícola recebendo
recebendo do homem da bolach’americana a solidão de tostão
e da Mãe outra vez nova a água-de-groselha maravilhosa.

E tu não sejas minha mulher sexual mas irmã minha
criança um pouco mais nova menina antiga
precoce reorientadora de minha vida em versos mal gasta
rapazito dado e perdido em nostalgias temporãs.

Na praia o favor farás de amar-me pelo que não fui
e sido deveria ter quando éramos para ser
sempre meninos de iodada derme e naturais dentes
uvas trincando como a pérolas de vinho doce.

O clarão da serra nos chegará florão do alto
a cal dardejando de suas casinhas comoventes
pouco nada nos dizendo não ainda a morte que tais
peças-pedras junta em dominó de esqueci’dados-inquilinos.

Do fundo das águas exumaremos traineiras
com delas os escuros pescadores da prata zichadores
pelas frinchas descalafetadas escorrerá o salitre
e aos fantasmas da lota abraçaremos fraternais.

Nos não falte nem tanto mar nem amor tanto
por sobrevivente turismo de crianças antigas nós
constantes decerto de fotografias versicolores
em gama de negro giz cinza e azul.

Longe do mar em salas de velhas mães
somos já rostos de galeria passe-partout
idênticos marinheiros que perderam as graças do mar
em 1970 ano mesmo desse suicida Yukio.

Tudo o que peço é a memória das uvas lavadas
em copos de água transparente e fria
e o coração poder descalçar de sua pedestre armadura
e testemunhar na praia a memória futura.

Quando de novo formos a ser vistos pelo mar
que lá estejas é tudo o que peço
tudo já tive e nunca pedi
senão que estiveras quando eu já não.




II

Tenho tanta pena de mais vezes não nascermos
está hoje uma tarde convocatória de todo o ouro
a luz é tão bonita que um gajo sorri sozinho
como fazem os tolos como as crianças fazem
como às vezes saltam os animais benignos no monte
e os peixes felizes e amnésicos à flor do oceano
e os cavalos imaginários das infâncias solares
como a minha foi quando eu nascia todas as manhãs
às vezes a Lua demorava-se manhã acima
como uma memória futura um sol de cal
e as árvores inclinavam-se em lapiseiro capricho
e no inverno as cheias davam um pouco vontade
de morrer de beleza de feliz desgraça de pobreza
quintas e casarios fumavam lenhas e ceias
o sino da igreja aportuguesava o Cristo local
e todos os pais eram vivos e trabalhavam e eram fortes
e todas as crianças ovelhavam pela erva das colinas
os velhos usavam chapéu e olhos sábios
de mochos-oitocentistas ilustrando bosques-falantes
longe o mar subia à paleta vidraceira do céu
peixes e estrelas dividiam a religião do infinito
o meu corpo não era ainda espermático ou licoroso
o teu também não que eu sei basta fazer as contas
acontecia-me nascer de noite também
quanto mais chovia mais eu renascia
de olhos fechados na cama aberta pela Mãe ouvindo
o aplauso infinito da chuva ao drama do mundo
o infinito drama do mundo das crianças ouvintes
da chuva desolada desoladora e tão gaiata
como uma criança nua havia-as muito no meu tempo
descalças no esterco dos animais-de-tiro da agricultura
infectadas de moscas e de alcoolismos fundadores
algumas rebentavam do coração numa aflição de pássaros
desasados de golpe pelo gato da miséria patriótica
comecei a desnascer mais e mais a partir delas
dei por mim aos dezassete anos nos bailes do Clube
a música eléctrica entrava no corpo tal formigueiro
líquido era o perfil das raparigas de febras enjauladas
em gangas causticadas de lixívia e primeiras
menstruações aromáticas em fissuras de caramelo
começou então no mundo a desinstitucionalização da eternidade
os homens de chapéu tiravam o chapéu e deitavam-se nos caixões
chorados com violência por filhas e cães muito magros
o sino cantava poemas mais lentos dessa lentidão
que crava as unhas fundo no coração
desapareciam as infantis ovelhas das colinas
umas iam para serventes da construção outras para oficinas
a minha Mãe teimou que eu haveria de estudar
o Século de Ouro da Poesia Espanhola por exemplo
a Porra dos Verbos Franceses a Implantação da República
Capelo & Ivens Gago & Sacadura Stanley & Livingstone
Dr. Jeckyll & Mr. Hyde Marie & Pierre Curie Holmes & Watson
Bucha & Estica Yourcenar & Mishima Nascer & Morrer
à noite revisitava o meu quarto em velório de livros
no pátio os cães rondavam como sentinelas envelhecidas
aos poucos os anos tornaram-se muitos dei-me à corrente
autocarros opúsculos crepúsculos botânicos tabernas frias
nunca percebi fosse o que fosse da minha Cidade
na gare rodoviária os bolos eram fritos a gasóleo
os choupais eram devassados por ciganos e homomulheres
já então a tinta-da-china das matas me matava
de rendilhada beleza litográfica eu ansiava de lápis
na mão nos olhos no corpo que se me erectava
de concupiscente paixão pela pobreza de viver tanto
enquanto já tão pouco renascia digamos assim
dei por mim amando mortos coleccionando almas
expostas em ouro ao sol de tardes assim agora depois
no monte à flor do oceano entre fábricas autocarros
tolos e crianças sorrindo sós.




III

Os olhos cheios de água do mar
orlam do olhar a condição litoral
um homem maduro suporta mal
o sal que enxuga o mesmo chorar.

Por exemplo raparigas ou cães
tidos e perdidas em baías ágoras
cruzando o manso terror da dissolução
uma noite de inverno uma manhã de verão.





06/08/2015

Rosário Breve n.º 419 – in O RIBATEJO de 6 de Agosto de 2015 - www.oribatejo.pt

Palavreado esti(o)utonal (I & II)



I
História Lenta com Hortênsia mais Dois Azúis

Aconteceu-me há momentos uma coisa que vos quero contar.
Não vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou só contar.
Por volta das seis da tarde, saí para descansar os olhos.
Subindo ia eu pelo lado esquerdo da avenida, o lado do Parque.
Do lado oposto, vinha descendo uma mulher jovem.
Vestia uma blusa azul-celeste.
Vinha longe.
Parei, voltei-me para o Parque e tirei algumas fotografias verbais ao chão vegetal.
A luz era baça, outoniça (ainda o é, posto que escrevo vinte minutos depois).
Quando me preparava para colher a imagem de certa hortênsia azul que ali vigora em solidão, ouvi nas minhas costas a voz:

Boa tarde!

Ela tinha parado no passeio dela para me dizer isto.
Virei a cabeça e mergulhei naqueles totais olhos azúis (como a blusa dela e como a minha hortênsia).
Eu devolvi-lhe a boa-tarde e levantei a mão em saudação.
Nunca a tinha visto por aqui.
É uma rapariga doente.
Tudo dela emanava a outra dimensão, a inexpugnável cosmogonia da doença mental.
Ela deu-se por satisfeita, prosseguiu a descida nos seus passinhos chineses, Ariadne enrolando por si o fio invisível da vida dela.
Eu fotografei a hortênsia e subi até vós.
Eu e ela ficámos, por assim dizer, quites:
nada posso fazer quanto à loucura dela,
ela nada pode fazer pela minha.

II
Fernando António Nogueira

Uma palavra pode ser uma pessoa.
Há uma idade-maçã em cada pessoa.
De novo, e descaradamente, rói a infância-maçã a velha pessoa.
A velhice é o bicho adentro a maçã-pessoa.
A pública noite vence a particular de cada pessoa.
Vence-a pessoa a pessoa.
De mínimas vitórias é feita a Grande Derrota da pessoa.
A minha noite não é a de todos – é a da minha pessoa.
Vou falar-vos da minha mais recente noite em pessoa.
Não vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou só contar:

Sucedia ser pelo entardenoitecer. Sob a latada adoçada pelo Estio e acossada já pelas vespazzzzzzângonas do açúcar verde-âmbar-mel, eu ventilava-me em aura de buda vestido. Da mata derredor, os últimos bichos urdiam deles, e do dia, a música derradeira, essa que antecede o sono – ou o passamento – ou o pensamento.
A hora à aurora avessa adentrava-me a mente à maneira de um nihil obstat o mais generoso. Por conseguinte, a vida mesma coçava-me e acossava-me, vespa ela também, o corpo escrevente à guisa de um imprimatur potest o mais facundo.
Escutei o chiar do carro-de-bois do meu vizinho Nando-Tó Nogueira, cuja xiloacústica tracejava o vidro do ar em limalhas de ponta-de-diamante. Sentia em perfeição a feição da gravidez fecunda e jucunda das macieiras (Há uma idade-maçã em cada pessoa etc.)
Nenhum incêndio queimav’ardia o Bosque-de-Existir-e-Pensar-no-P’ra-Quê-Disso.
Era o sossego, era a açucena, era a cegarrega, a doçura sensível, a seiva sedosa, a seda & a sede saciada. Era a tal hortênsia. Sentia-me bem, a ponto de me não causar mal a consciência de haver nascido sem que opinião me houvesse sido pedida.
Foi então que me chegou a Palavra.
Em Pessoa.




Canzoada Assaltante