© René Magritte
Animais ou menos
Segunda-feira,
13 de Abril de 2015. O octogenário e prestigioso periódico Diário de Coimbra publica, a páginas 10, uma carta dirigida ao Director
daquele jornal. Assina-a uma senhora chamada Maria João L. G. de Oliveira. A
missiva tem título: “Especismo”.
Começa assim:
“Senhor Director,
Em pleno século XXI, os pombos de
algumas cidades continuam a ser vítimas de toda a espécie de maus tratos.”
E
mais adiante:
“(…) é possível controlar a
reprodução destas aves, recorrendo a métodos humanos. Quem ama os animais, quem
é capaz de interiorizar o seu sofrimento, quem não é especialista, sabe como
fazê-lo.”
Aqui
há anos, uma massiva sobrepopulação de aves marinhas nas Berlengas levou, de
facto, a medidas de controle daqueles vorazes seres voadores. Ao que sei, a
intervenção foi científica e tecnicamente muito bem feita. Intervieram na
nidificação e coisa e tal. Não houve genocídio. Houve racionalidade. Voltemos
todavia à carta da senhora conimbrincense:
“Infelizmente, não é o caso da
Câmara Municipal de Santarém, que está a provocar um assassinato destas aves,
como se não fosse possível resolver, humanamente, o problema da superpopulação
dos pombos. Além disso, a matança de animais é crime. Gandhi tinha razão quando
disse que o nível de civilização de um povo se pode avaliar pela maneira como
os seus animais são tratados.”
Os
geniais pintores Picasso e Magritte gostavam de pombas. Terá sido do bico de
uma delas que Noé recebeu o ramúsculo de árvore anunciador do fim do Dilúvio. O
poeta português João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ) disse tudo naquele poema
maravilhoso com que finaliza o seu livro, de 1982, “O Regresso dos Remadores”:
“Poemas”: “Aspectos perdidos
pequenas sombras ao redor de
poderosa imagem
Aquilo que distingue a palavra ave
da palavra pássaro.”
Onde
já vamos, ó Leitor/a meu & minha: da ‘solução’
(holo)cáustica à la Câmara de
Santarém até pintores e poetas. Pois continuemos em tal senda, que má não é e
mal não faz. Um ano antes do supracitado livro de JMFJ, um crítico literário
chamado José António Llardent publicava no Suplemento
n.º 1 da revista Número (Madrid,
1981) algumas linhas sobre o (por mim) mais venerado Poeta português
(felizmente) vivo: António Osório, que foi bastonário da Ordem dos Advogados
uns anos largos depois de haver nascido em Setúbal a 1 de Agosto de 1933.
Traduzo:
“A vida, para Osório, é
substancialmente indivisível no que respeita à dor e à morte. Dentro do seu
sistema (afectivo), radicalmente unitário, os animais ‘são umas criaturas
surgidas no terceiro dia, mais velhas portanto do que o homem e talvez por isso
mais sábias ou menos iníquas’. O poeta sente-as inseparáveis da condição
humana, ainda que tal condição seja perturbada por leis biológicas que
pretendem justificar, em nome da própria vida, a dialéctica da
destruição."
No
meu bornal, há muitos anos (muitos mesmo) que, ao lado de ninharias como
livralhadas e croniquetas, transporto frascos cheios de trinca-de-arroz e sacos
plenos de migas de pão. É para dar aos pássaros. Mas é comofernandesjorgeanas aves que as vejo comer. Osoriamente. Não
camaramunicipaldesantaremmente. Não barbaramente. Não holocausticamente.
Julgamo-nos, nós humanos, superiores a tudo e a todos quantos vivem neste
planeta. Fingimos desconhecer que somos a única espécie em voluntária
auto-extinção. Estamos (quase) todos abaixo de cão. As nossas malfeitorias para
com toda a fauna não sapiens sapiens sub-bestializam-nos.
Mas basta. Concluamos com a senhora Leitora do Diário de Coimbra:
“(…) cabe também aos pais e à escola
(e eu sei que algumas o fazem…) desenvolver, nos mais novos, a sensibilidade ao
sofrimento dos animais, o amor e o respeito por seres que são, a todo o
momento, vítimas do especismo, preconceito que lhes nega o direito, que também
têm, de não sofrer, ou seja, a igualdade que deve existir entre as diferentes
espécies.”
Ámen
– digo eu, em terra tão tauromáquica quão columbocida.
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