Quem Disse
O
homem vestido de escuro surgiu como uma exclamação muda na chuva da tarde.
Contornou a esquina, parou em frente ao contentor municipal, remexeu a camada
superior do lixo. Não encontrou o que procurava. Virou costas ao lixo,
deixou-se molhar minutos e mais minutos. Tinha um chapéu escuro. Tinha uma boca
fina e horizontal de travessão de diálogo com ninguém. Era só um homem vestido
de chuva na tarde escura.
Recupero
hoje essa visão violenta. Senti, então, uma mesquinha misericórdia. Também, às
vezes, sou cristão sem querer. Depois, critico-me com aspereza. Pena por quê,
para quê, por alma de quem? Por nada, para nada, por ninguém. Havia o Café
amarelo ali perto. Eu tinha já estes quase tantos anos. Acampei na mesa junto
ao aparador (guardanapos dobrados, talher, cesto da fruta, palitos, tintos e
brancos, galheteiros, pratos, sal & pimenta, extintor). Tirei a única
certeza. O caderno. Então, o homem da chuva continuou.
Era
um homem vestido de escuro na tarde de chuva. Ele procurava. Não estava no lixo
o que procurava. Estaria alhures. A chuva desalmava até a respiração, a água
babujava nas sarjetas entupidas, niquelava nos pátios abandonados o folhame dos
plátanos senhoriais, fazia do ar uma grade sem limite nem sentido. Era o céu
desabado, toda a tristeza do mundo. O homem saltou o muro da casa abandonada,
dirigiu-se ao plátano maior e remexeu a terra. Não encontrou o que procurava.
Ali o deixei por instantes.
No
Café amarelo, atento às moscas refugiadas, cocei a mão esquerda com a direita,
ouvi os impropérios do rapaz reformado aos 27 anos por pancada mental, dei-lhe
um cigarro e agarrei-me ao caderno enquanto o desespero me colava à boca a fita
de goma do costume. Não dei atenção ao desespero. Um homem é um homem.
Um
homem vestido de plátano procurava uma coisa na chuva. Saltou o muro, abandonou
o quintal abandonado, foi pela calçada foi pela calçada foi pela calçada até
que chegou à parede onde luzia a santa do mesmo nome. Era um nicho ogival onde
tinham embutido a santa. Duas velas ardiam dentro de água: os olhos do homem
escurecido. O homem olhava a santa, que olhava o homem. Tremendo duelo de
almas.
Nessa
altura, eu procurava moedas nas calças. Estavam no casaco. Fizeram-me a conta,
paguei e saí para a chuva que aluminiava o mundo como o mundo era essa tarde.
Não foi assim há tanto tempo. Já era, suponho, o futuro.
O
homem tinha deixado a santa entregue ao martírio afinal benigno da solidão. Ele
era agora uma interrogação oblíqua parada em frente à montra da loja dos
rádios. Olhava os aparelhos japoneses. Não era isso, nem a santa, o que ele
procurava. Era outra coisa.
A
mesma coisa me esperava à saída do Café amarelo. E era a vida. A vida era
tarde, já então. Esquerda ou direita, igual. Subi a calçada de pedra subi a
calçada de pedra subi a calçada de pedra até que cheguei ao bar de putas.
Estava fechado. Quando um homem vai a um bar de putas e o bar de putas está
fechado, alguma coisa se desacertou sem remédio na vida desse homem.
Esse
homem já não era perante os rádios, tinha seguido pela tira de terra e cacos de
tijolo que leva à via-férrea. Por aí eu fui.
O
homem esperava o comboio. Tinha desistido de procurar o que procurava.
Toquei-lhe com a mão direita, a que escreve, no ombro do mesmo lado. Ele
virou-se:
– Finalmente.
Andava à tua procura.
Disse
ele.
Disse
eu.
Sem comentários:
Enviar um comentário