22/01/2015

Rosário Breve n.º 391 - in O RIBATEJO de 22 de Janeiro de 2015 - www.oribatejo.pt

Terá parentes idosos sem saúde o senhor ministro da Saúde?

Até aos nossos tristes dias, os idosos pobrezinhos de Portugal não tinham onde cair mortos. Agora já têm: é nas urgências hospitalares, esses brancos matadouros da contemporaneidade. Esperam e recebem a morte ao abandono das macas dos bombeiros, vá lá que agasadalhadinhos e venha cá que com direito a chá mijão e a bolachas de cianeto.
Cá fora, os órfãos desses velhos despojados de toda a esperança e de toda a dignidade sempre têm direito, pouco depois de cada passamento, a quinze segundos de fama nos telenoticiários, à maneira dos “talentos” instantâneos que a hílare Teresa Guilherme garimpa a preceito rasca aos monturos.
Logo de seguida, a prestidigitação dos cultores da Estatística (essa arte da mentira matemática) enleva-os (aos mortos e aos órfãos) de cerúlea (que é o azul do Céu) misericórdia, lustra-os logo do áureo esmalte da fatalidade, banha-os de pio sebo cristão, unta-os da mais chilra água-benta à beira da fervura das lágrimas crocodílicas, logo os ungindo, enfim, de um seráfico esplendor que lhes fica, precisamente, a matar.
Eu já não consigo ter muita pena dos pobrezinhos de Portugal que, à asneira de aqui terem nascido, somaram o disparate de se terem deixado envelhecer cá. E não consigo ter muita pena deles porquê?
Porque a) sou ímpio; e b) foram eles a votar c) nestes que lá estão; d) naqueles que lá estiveram e e) nos homólogos de c) e d) que lá hão-de estar.
Nos entrementes, dez metros a estibordo da minha caligrafia, uma bonitíssima velhota marca presença e dá sinal de vida. Está no passeio frontal da pastelaria à espera do marido, que foi ali num instantinho à Caixa transferir uns patacos-SOS aos filhos divorciados e sem emprego nem uso que tem ó-tio-ó-tio em Lisboa. A senhora apresenta-se enroupada de abafos nacarados como o dentro das conchas. Sopra os dedos enregelados das mãos. Sei que lhe apetece o chá-das-cinco. Voto na esperança de que o marido (que roça já, como ela também, as oito décadas de nascido) se não sinta mal de repente enquanto espera vez para o caixa. Porque esta terra tem urgências hospitalares: esses brancos matadouros etc.
Nota: o senhor ministro da Saúde está, à hora a que V. escrevo, de visita ao morredouro hospitalar local. “Reunião de trabalho com a administração”, parece. Ao que sei, o senhor ministro da Saúde é um patusco bem assalariado. Tem motorista, isso também sei. E alcavalas de mordomias inerentes ao cargo, claro. Não sei é se tem parentes idosos. Ou se, tendo-os, estarão ou não eles bem de saúde. Oxalá que sim. Devem estar. O mais certo é que, em caso de indisposição súbita, não tenham de penar odisseias de infindável espera multi-horária nos calabouços esfregados a lixívia, a creolina e a ácido fénico das unidades médicas. Um parente-ministro sempre é um ministro-parente, caraças.
Escrevo isto sem me rir. Nem me importa que o senhor ministro da Saúde venha ou não venha a ler este desarrazoado chorincas meu. Eu escrevo para toda a gente, mas não é com toda a gente que falo. Com o senhor ministro da Saúde, muito menos. Também tenho os meus pudores. Também sou vulnerável à ira e à indignação. Também me canso. Também me couraço. Também me blindo. Para mais, os meus Pais já morreram. Estão safos do corrente genocídio português.
O problema é que caminho para velho. Uso o meio-capote que o meu Pai me legou, como naquela história que V. sabeis. A vida sabe-me na boca a noite fria mais vezes do que o recomendam a posologia medicamentosa e a sensatez existencial. E sim, confesso ter receio de que o senhor ministro da Saúde me queira mecanografado nas estatísticas dele. Que é como quem diz: no seu obituário economicista anti-pessoas e anti-direito à vida.
E que, portanto, eu ainda acabe por demitir-me de tudo primeiro do que ele do dourado lugar que ocupa, ele o senhor ministro da Saúde, a quem tal mortandade geriátrica deve incomodar tanto quanto a mim a boazona da Irina ainda namorar ou já não com o tão jovem e tão saudável e tão bonzão Melhor-do-Mundo.


2 comentários:

ENFº Enfermo disse...

Parabéns pelo texto interessante e apetitoso com que nos ofertou.Uma lufada de ar fresco dentro do mais do mesmo.

Daniel Abrunheiro disse...

Sou eu quem agradece a leitura, EE.

Canzoada Assaltante