31/12/2014

A crónica 388 dita pelo Bruno Oliveira

Esta semana, tive a grata surpresa de ouvir a minha própria crónica (última do ano) em versão áudio produzida e gravada pelo Bruno Oliveira, companheiro e amigo meu e do Jornal O RIBATEJO. Quem a quiser ouvir ao mesmo tempo que lê (ou não) - aqui está.
Um abraço daqueles valentes, grande Bruno. Muito grato te fico.
http://www.oribatejo.pt/2014/12/29/rosario-breve-stock/

26/12/2014

Rosário Breve n.º 388 - in O RIBATEJO de 25 de Dezembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Stock

Não digo que seja total a ruptura de stock. Tanto, não digo – mas que seja indesmentível a vigente escassez de anjos, lá isso é e digo.
Há meses-anos na minha vida que não topo um. Perambulo muito à cata deles. Por vãos & por reentrâncias de prédios devolutos & de teatros sem actores, toco com a ponta da bota os hirtos corpos encartonados: volumes pessoais reduzidos a uma marca de frigorífico japonês. Gente, enfim: hirtos seres autodeserdados, tropa a que a vida, assobiando para o lado, estropiou sem solfejo nem grande remorso.
Antigamente, eu sitiava-os, aos meus anjos, sem acuidade nem esforço. Eles aconteciam-me. Talvez fosse da idade. Da idade deles, digo. Ou, digo, da minha, que nem idade quase tinha. Recordo aqui, e aqui o assento, aquele anjo do Novembro de 1981. Foi à saída do Teatro do Príncipe Real. Era um espécimen apardalado de figura. Magro, quase alto – e entre o cinza e o castanho: assimétrica envergadura – e molhado de pés como um veneziano sem barca. Cumprimentei-o sem recorrer a sílabas. Paguei-lhe um ponche quente no bufete do Teatro frio. Separámo-nos, depois, no vão das escadas da Previdência, ali-onde-ainda-agora aquele homem registava sociedades de totobola manuscritas a bic-cristal-cor-de-pombo e aquecia a frio o café-com-leite da solidão vitalícia em púcaro de folha sobre língua azul de gás-estearina. Esse anjo ainda me deu para alguns meses de consumo sem remédio: como o tudo o que se consome sem poder remediar-se.
Tive outros anjos entretanto-tão-pouco, valha a verdade. Por exemplo, aquele de coisa alguns anos depois de coisa afinal nenhuma, esse de um ano algures & alhures entre os nascimentos da minha Primeira e da minha Segunda filhas. Esse, sim: foi por um Outubro.
Apareceu-me ele no espelho do barbeiro – e era do meu mesmo cabelo que ele se perdia à lancetada bífida. Trazia ele consigo meio papo-seco de mortadela quase transparente, dessa que dão aos pobres às portas de Santa Apolónia, a Ferroviária, em desobrigas de catolicismo esmoler por calendário à hora-TV. E sim, o olhar dele tinia. Tinia coruscâncias à maneira das tesouradas recebidas em espelho: olhos que dava para escutar.
Eu cá por mim, ter tempo – tenho. Espaço para V. contar de muito(s) mais anjos é que não. Leitor meu: isto é só, e tão-só, uma página de jornal: só não é a minha vida. (A páginas tantas, é melhor do que a minha vida. Seja. Não discuto isso. Estou aqui mais por causa dos anjos que já não há. Ou que não hei. Ele há-de haver ainda alguns, que não sei eu?)
Alguma coisa sei. Vi a cabeleireira sair foríssima de horas sem ser por véspera de casamento. Ainda agora foi: uma reles terça-feira, reles antevéspera do Nascimento do Deus-Menino-da-Coca-Cola-Paz-na-Terra-Prometida-aos-Judeus-de-Boa-Vontade. Nove da noite. Dez euros por umas madeixas que até ficam mal à freguesa. Dizem até que o gajo dela (da freguesa) lhe bate. Mas o anjo de hoje: esse?
Parece-me tê-lo vislumbrado na fila do desemprego. Não o confundi. Os outros todos eram só gente. Desandei. Ele há menos gente do que anjos, se calhar.
Isto não anda fácil entre Novembro e Outubro.

18/12/2014

Rosário Breve n.º 387 - in O RIBATEJO de 18 de Dezembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Sou a favor de o Natal ser de graça

O Natal, dizes tu?
Entre os meus 18 anos e anteontem, sempre foi uma quadra porreira para borracheiras de porto em manhãs que acabam tarde às portas da noite, entre rapazes a quem também já morreu alguém e a balcões que ao contrário da nossa vida eram & são inoxidáveis.
Eu faço que gosto muito do Natal por ser a época em que ser bonzinho não parece mal. E por ser quando, à entrada do hipermercado, nos dão de borla um saco vazio da (ou como a) Jonet para à saída enchermos com ele os bolsos ao Belmiro.
Também faço que gosto muito dos peditórios ubíquos como a má-sorte & do chinfrim electr’altifalante por todas as ruas e por todas as praças sem excepção & das velhas evangelizadoras que manquejam os joanetes à caça do dízimo em nome do jeová brasileiro alternativo.
O Natal é perfeito para encontrarmos finalmente o sem-abrigo à justa medida do casaco de malha que a nossa ex-sogra nos deu há trinta anos ao mesmo tempo que dava um de camurça ao nosso ex-cunhado, soslai’olhando-nos trocista e sibilina como ridente víbora, a megera. (Também agora fica lá com a filha por remendar, anda.)
Ai o Natal, o Natal! É quando mais neozelandês me sinto, isto para V. ser o mais franco – rodeado de carneiros que votam como ovelhas e cheirando a lã cagada como eles & elas.
Tenho fingimento de pena, claro que sim que finjo que tenho, das divorciadas de perl’ágrimas marejadas por este ser o ano de o menino ir com o pai, maldita a hora em que me deitei debaixo dele, por sinal foi noutro natal, como passa o tempo, isto é ela a rosnar.
A quadra entristece-me um bocadito, confesso, porque o Governo nunca tem dinheiro que chegue para comprar neve suficiente a todo o País tal que todo o País se sentisse tipo postal lapão do Minho a Timor, digo: a Silves, gastam tudo sempre e só na Serra da Estrela, ao menos poderiam variar de níveo sítio cada ano, este ano por exemplo em Portalegre, para o ano em Abrantes para o doutor Consciência não se sentir tão só no solitário alpinismo que a assertiva lucidez crítica afinal é, no Funchal é que não porque eles estoiram tudo nos foguetes do fim-d’ano e em marinas de que o mar dá cabo há uma data de milhões de euros nossos. Isso e o ringue de patinagem do Terreiro do Paço ser de plástico como este ano se lembraram de fazer, deve ter cá uma piada tipo Malucos do Riso filmados na Síria à hora-de-ponta.
Confesso ainda: cada Natal, performo a minha imitação preferida. A minha imitação preferida tem imensa graça (não tem, Graça?) e é a Imitação do Meio-Peru. Resulta sempre, faz sempre rir muito, é muito barata e é a coisa mais simples de se fazer. Consiste nisto: não deixo que me matem mas deixo que me encham de aguardente na mesma. O dano colateral é começar logo, por causa de tanto porto prévio, a ver o tremeluzir das luzinhas antes de acenderem a gambiarra ao pinheiro.
O Natal, dizias. É aquilo dos jantares contrariados com a besta do chefe da repartição, com o imbecil do autarca amigado com a educadora, com o revulsivo sinapismo do actual companheiro da cataplasma de mostarda que a nossa ex-mulher é e sempre foi e sempre há-de ser, bem te lixas que este ano o Menino (percebeste a maiúscula?) é comigo.
Ou então, não.
Ou então, nada disto.
Digo: tudo isto na mesma, mas outra coisa ainda – remanescente, vera e de vidro daquele que não corta. Esta coisa assim:
Eu ter dezoito anos sem anteontens, ninguém me/nos ter morrido e não ser preciso nem porto nenhum nem aguardente alguma. Aí sim, o Natal seria e teria, Maria, outra coisa. Outra graça.
Não teria, Graça Maria?

11/12/2014

Rosário Breve n.º 386 - in O RIBATEJO de 11 de Dezembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Verdades simples 

Não é com peditórios à caridadezinha que se resolve a pobreza infantil. É dando trabalho aos pais.
Esta é uma verdade simples, dessas evidências que não precisam, para que a elas se chegue e a partir delas a algum lado se vá, das prévias descoberta do fogo ou invenção da roda. A realidade tudo faz, porém, não apenas por contrariá-la, como por repeli-la. Uma espécie de bebedeira ubíqua, oblíqua e iníqua entorpece os mandadores da finança, esse um-por-cento inquilino de palacetes prostibulares a partir dos quais se congemina e põe em prática a miséria multitudinária dos restantes noventa-e-nove.  
As fortunas colossais podem, titularmente, mudar de nome. A miséria é sempre Zé que se chama. Todos temos sofrido e sassaricado o triste carnaval radiotelevisivo expositor de miseráveis delinquentes atulhados de ouro de repente apanhados de botija entalada nas beiças borradas de caviar. Percebo que seja humilhados que se sintam. Percebo. É por causa de outra verdade simples, daquelas antigas que a sabença popular crismou: “Vergonha não é roubar – é ser apanhado a roubar.” Bem asseverou o grande Balzac que toda a grande fortuna está fundamentada num crime. Ou em muitos. Angola que o diga. Qualquer paraíso-off-shore-of-course que o confirme. Nós que cavaquistãomente o reiteremos.
Os bombeiros põem por nós as mãos no fogo. Pois põem. Daí, que fazem os canalhas? Compram submarinos.
A água é de todos e não se nega a ninguém. Pois é e pois não. Daí, que fazem os pulhas? Privatizam-na.
As empresas de serviço, interesse e património públicos são de incontornável condição estruturante da sociedade. Pois são. Daí, que fazem os caniches? Põem-lhes olhos-de-bico e mandam-nas passar a falar em mandarim.
A Língua-Pátria é o mais seguro capital simbólico e identitário do Povo. Ah pois é. Daí, que fazem os académicos falsamente diplomados? Aplicam-lhe o simplex ortográfico e fazem dela uma babélica vozearia de casa-de-alterne fundada em Goiás com sucursais em tudo o que for foral lusitano.
Além de tudo isto, há os eufemismos aldrabões com que os burrocratas da má-fé maquilham a realidade. Por exemplo: chamar “requalificação” àquilo que é nu e cru despedimento. Ainda na semana passada ouvi isto de um requalificado, perdão, reconduzido no cargo.
Como Sócrates (por exemplo ele) foi primeiro-ministro entre 2005 e 2011, o mais curial é explicar-lhe estas e outras coisas como se ele tivesse seis anos. É outra verdade simples, aritmética no caso: 2011 menos 2005 igual a seis.
Verdades simples. Não quero chamar-lhes solenes. (Mas são-no.) Solenes, só as missas e os embirranços. Como não frequento as primeiras, é solenemente que pratico os últimos. É talvez por a minha criação datar da época em que a ignorância se envergonhava de si mesma. Hoje, não. Hoje, a ignorância é curricularmente obrigatória. É arrogante. É afoita. É atrevida. É insolente. É governante. Superiormente lúcido, o grande Pessoa referia-se à “sinceridade” como “prática anti-social”. Para crescer sem ser a pulso na carreira, sim. De gentinha a gentalha, o passo não é muito largo. Falo desse tipo de gente que tem quatro pés e nenhuma mão – se não na anatomia, decerto na mente. (Que mente, mente sempre.) Subitânea, por súbita e instantânea; soturna, por solipsista e nocturna – a récua de bestas que nos espezinha e estruma a vida não tem de ser encarada e zurzida senão a chicote judicial legal e legitimamente brandido. No fundo como à flor, trata-se, quando e quanto não mais, da derradeira maneira de nos devolvermos, a nós mesmos, uma cara de gente, em vez de barbearmos ao espelho uma espasmódica carranca de chafariz mais própria de sofredor das tripas do que de portador de humano semblante.
Entretanto, Dezembro faz pela vida. Faz, não – vai à vida. Como à vida vão as 32 famílias dos recém-requalificados do Centro Distrital de Santarém da Segurança Social. Eu disse “Segurança Social”? Disse mal. Insegurança Associal é a verdade simples alternativa.
À caridadezinha, o menino-jesus medeia o burrinho e a vaquinha. Já o pagão pai-natal, de quem se não conhece nem mulher nem filhos, nos deve fazer concluir que o mais sensato ainda é irmos chamar Pai a outro.
Ou, como diria a botóxica Manuela Moura Guedes, anda uma pessoa a criar cães para isto.


04/12/2014

Rosário Breve n.º 385 - in O RIBATEJO de 4 de Dezembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Aviso

Para epígrafe de um caderno que há-de ser livro e que ando compondo desde o dia 13 do mês passado, elegi este trecho de Georges Duby (in As Damas do Século XII – 1, Editorial Teorema, Lx., 1996):
“Aviso desde já: o que pretendo mostrar não é o vivido real. Inacessível. São reflexos, o que os testemunhos escritos reflectem. Confio no que dizem.”
Mais a esta liça ajunto que: toda a vida fiz da atenção uma espécie de estúdio de fotógrafo verbal, desses de boneco-cavalinho pelas pagãs feiras santuárias da populaça, resultando na prática, a minha vida mesma, em um ror de mentiras – se não honestas e/ou piedosas, ao menos bem intencionadas, como é próprio dos infernos privados.
Ao atulhado logradouro de lembranças vou buscar ficções verídicas e inverosímeis no intuito da mistificação alegórica e pró-moral. Exemplo maior: morta a Mãe, finado é tudo o que for princípio.
Ao estaleiro da memória recorro a toda a hora, mormente quando anoitece logo pela manhã. Exemplo não menor: o meu Pai manquejando, como se o liso chão estivesse emboscado de invisíveis móveis irrequietos tropeçadiços degraus. Assim escrevo. Assim escrevivo.
A viúva que acaba de passar? – Manilha-de-paus com atavios de dama-de-copas, dessas que não raro desovam filharada póstuma bem para além das 36 semanas de regimental respeito ao falecido.
O ajudante de armazém importador de bananas com tanto quisto sebáceo na região demarcada do sovaco? – Estandarte vivo da Escrófula com que Deus Vosso Senhor intumesce os culpados relapsos de onanismo, esses punhetas ateus.
Aviso: não é que estas pessoas tenham, deveras, acabado de passar pela antecâmara do meu lápis fot’oftálmico – mas existem. À minha maneira, existem – como aliás também os anjos: só quem, pelo entardenoitecer do Outono, não foi dar aos patos fluviais uma última demão de pão velho os não sentiu. (Os não sentiu no olhar, que não pelos olhos, digo.)
De que trata, pois, o caderno-livro de que V. falo? De impreteríveis sedas & sedes, de espúrias espumas, do arco-da-velha-das-coisas, de cenas de uma violência extrema como por exemplo a epifania que toda a criança, mesmo alheia, é, de lances de censurável exposição sexual como ainda agora aquela nuvem missionariamente por cima daqueloutra (mas nenhuma nuvem, não importa, está-dito-está-feito-está-lido-está-vivido). Trata do antagonismo entre a luta e o luto. Fotografo estas povoações sem remédio mas com farmácia por que disperso a minha vida compendiável para além daquelas duas datas que sabemos.
No fundo como à flor, vivo de & para ninharias. Seja. Na dimensão daquilo a que à falta de melhor palavra chamamos Realidade, o que importa mesmo são os dois dedos manuais que um trabalhador perdeu de si em acidente laboral ocorrido no passado dia primeiro do corrente em uma empresa metalúrgica sediada em Celeirós, Braga. Isso sim. Isso é que é literatura. Eu sei. Nem sinto confusão, nem faço confusões – a mão doravante mutilada desse trabalhador conta mais do que quanta página eu seja capaz. Pois, nenhuma confusão. Exemplo: não confundo o Duarte Lama com o Dalai Lima. São carecas não mutuamente reagentes.
Fiquemos hoje por aqui. Está em curso a semana. São 7 e 19 da matina, tenho de apanhar o expresso das 8 e 20 para a minha terra, vou lá tratar de papeladas inadiáveis relativas a não sei quê (mas a quem, sei). Está frio. Levo o casaco mais pesado. Vou de botas.
Confio no frio. É uma espécie de pele de vidro. Tenho os dedos todos.

Canzoada Assaltante