27/11/2014

Rosário Breve n.º 384 - in O RIBATEJO de 27 de Novembro de 2014 - www.oribatejo.pt

(ilustração gamada ao diário PÚBLICO)



Aquilo da gralha no livro da Eduarda Maio

A derradeira terça-feira do corrente Novembro amanheceu mais respirável. É talvez da barrela da chuva recente – ou será das notícias, que nem sempre são más ou reles?
O senhor Custódio parece mais ligeiro, dançarinos quási seus passos rumo à alfaiataria que de seu bisavô vem já. Nem o bisavô Custódio alguma vez facturou um milímetro de fazenda a mais, nem jamais o Custódio bisneto branqueou lã da Covilhã sem ser a giz macio.
A ti’ Pureza (que arrenda quartos mas o declara às Finanças) também apresenta hoje certa renovada seda-rosa na carita miúda e portuguesa. O sonho dela sempre foi estabelecer-se como porteira de prédio de luxo em Paris – mas Paris é chão de que roubaram as uvas.
O Raul Faquir Arrumador, que mama malvasias de manhãzinha como um campeão do santo-cálice (dizem uns que por desgosto de amor, outros que não, que nada disso, que é por amor & gosto à malvasia ponto-final), madrugou hoje de meia-de-leite & torrada-margarina nos queixos.
Os pintores por conta do Rafael das Obras desunham-se pró-terminação hoje-ainda-o-mais-tardar-ontem da empena principal da Junta de Freguesia, que há meses andam naquilo sem retoques finais à vista. E o Rafael desconta como deve ser para a Caixa deles e ajuda-os no IRS de cada temporada.
O tudólogo do bairro, por apodo certeiro Chico Corno, que mais fala quão menos sabe, à semelhança das comadres comentadeiras da trubisão, garante a quem o quer ouvir que “aquilo em Évora ainda é do melhorzinho p’ra preventivas cinco-estrelas, muita sorte teve ’inda o gajo de não ir para ao pé dos pedófilos e dos romenos”.
Por ser terça-feira de liga-dos-campeões, o Esteves Barbeiro só quer mas é que o seu/dele Sporting não acabe empatado como o Bloco de Esguelha. Corte por corte, à política e à ladroagem não liga pêva.
A Clotilde Viúva, que leva as cartas do tarot para o ioga na inquebrantável fé do monitor de reiki, é que está danada consigo mesma por não ter sido capaz de adivinhar o descalabro da preventiva do Coiso, ela que tanto se fiava nas procuradorias-gerais do laissez-faire-laissez-passer tão ao gosto dos apologistas do se-não-fosse-este-era-outro-qualquer-como-o-que-vem-a-seguir.
E eu, que gosto mais de biografias alheias do que da minha própria vida, eu unto-me de gozo por ter dito desde o primeiro dia que aquilo no título da Eduarda Maio era gralha grossa, que o correcto seria, e é, O Menino do Ouro, não de.
Entrementes, à flor viva do Rio, os patos gargalham mais alto – parece-me cá a mim que sim. A esquadrilha pombal, que sempre preferiu a migalha certa de cada dia ao improvável mi(ga)lhão da candonga peculata, ronda-me as botas à cata do honesto arroz-trincado e do honroso milho-partido com que há tantos anos celebro das aves a filosofia do sustento-de-cada-dia.
O único senão para todos nós aqui do Bairro 10 de Junho é não se ter ainda ouvido falar, pelo menos até ao meio-dia não, de submarinos. Ó felicidade passageira – és uma doca-seca.
Sentencioso, teixeiradepascoaesmente, o nosso decano, ti’ Abílio Cuco, a meio da taça de cevada é desta concisão lapidar:
Ninguém que trabalhe tem tempo para juntar 25 milhões. Que trabalhe. Honestamente. Ninguém.
Évora, pois. Para já e por enquanto. Ou por encanto, Eduarda.


24/11/2014

Rosário Breve n.º 383 - in O RIBATEJO de 20 de Novembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Da iníqua alegria e coiso

No cubículo envidraçado a plástico que a gelataria berma-fluvial reserva aos fumadores, a uma luz-néon toda tela de Hopper, o rapaz cego lambe o seu cone de baunilha com uma bola de chocolate e outra de limão. A seus pés, o cão labrador que o guia, animal de negro cabelo lustral e muito limpo, carvão brilhante na cegueira de tanto néon. Mestre cicerone de seu amo, espera aos pés dele sem um monossílabo sequer, dando a ideia de poder fazê-lo para o resto da vida, isso de esperar por ele, sempre por ele e só por ele, mesmo que o cone de gelado venha a revelar-se, como a cegueira, infinito.
Eu sou o outro tripulante de tal nave. É pelo entardenoitecer. Já soprei o férvido abatanado, já queimei na boca um par de cigarros dos de enrolar, já me apeteceu ir de vez para a Noruega – mas fico mais um bocado. O que entretanto faço, é lapijar cifras para a crónica da semana. Coisas assim:
Antigamente, ao cabo do curso davam-nos o diploma, hoje dão-nos o passaporte;
Isto é um país de patetas que se julga de poetas;
Para que o raso aprisco suba a zimbório, há que ter locanda trepadora;
Dar um salto alto não é o mesmo que andar de salto-alto;
ABC – Angolanos-Brasileiros-Chineses: o Colonialismo Contra-Ataca;
Quem te visa, teu goldinimigo é;
Anábase da legionella político-financeira: ébola do regime;
Esquizofrenia geral dos colarinhos-brancos: o espírito santo a dar cabo do pai e do filho;
Em alemão, ‘Coelho’ diz-se e escreve-se ‘Kaninchen’: está tudo explicado;
Podridão: o meu País é Podregal;
Potamónimos da minha vida: Mondego, Ceira, Tejo, Vouga, Pavia, Lis, Vala do Norte;
Educação, Saúde, Justiça: três tiros no porta-aviões;
Impressionante, o que por aí vai de mortes agrícolas por causa da tractorose;
Demissão do ministro: mais vale sair uma tarde do que ficar o Macedo;
Esquisito, aquilo em Santarém: portuguesíssimos cidadãos e cidadãs normais que, correndo à noite por saúde, divertimento e convívio, se tornam ingleses de repente: midnight runners ou coiso;
Rapaz cego com cone de baunilha, labrador bonito a seus pés.
Nisto estou – e a crónica por fazer. No mesmo caderno, reencontro-me com uma citação tão mais perturbadora quão mais acertada: “"O futuro onde estamos tem a iníqua alegria dos sacanas.” (Rui Nunes o dixit, in Uma Viagem no Outono). Pois tem, senhor Rui. E a inócua tristeza dos acéfalos também. O autismo eufórico deles sacanas é mortífero. A gente vive por aqui um genocídio daqueles tipo devagarinho, género tristeza-pegada.
Lapijo ainda, ainda assim, um exórdio de diálogo cénico tipo ’tás-doidinho-ou-quê:
– Olá, sou o Virgílio das Éclogas & Bucólicas.
– Ora viva, sou o Fonseca dos Midnight Runners & Coiso.
Estou feito ao bife com sabor a petinga. Custam-me muito, os dias que não são terça-feira – porque é às terças que componho a crónica das quintas, por a terça ser o dia em que a minha vida faz algum sentido, uma vez por semana ao/ou menos. A jornada herdeira da segunda-feira torna-me benevolente e perdoável a ilusão de ser útil. Os outros dias encorpam o diabo do ócio involuntário, isso a que os sensatos chamam desemprego e a que o Passos Kaninchen chama oportunidade. É como se o horror vácuo dos domingos durasse seis dias de enfiada. Hei-de eu ainda, nesta vida que não há outra, lograr escrever como o meu Pai pintava e como a minha Mãe povoava a Casa? Não sei.
Sei tão-só que a metáfora de remate me esperava, fácil e justa, desde início: que por este morredouro de poe(pate)tas o mais é cegueira, o mais é ainda gelarmos de tanta espera, Mister Hopper.






13/11/2014

Rosário Breve n.º 382 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt



Parabéns, pá

O nascimento público de O Ribatejo deu-se à luz no dia 8 de Novembro de 1985. Temos festiva data redonda no ano que vem, portanto.
Para a História relativa do jornal, este 29.º aniversário é de uma contemporaneidade triste: são estes os dias da famigerada legionella, praga que sem graça grassa por freguesias e populações de Vila Franca de Xira, nomeadamente Vialonga, Forte da Casa e Póvoa de Santa Iria. À hora a que escrevo (noite já de 11 do corrente, 96.º aniversário do Armistício de Compiègne, que, já agora, finalizou a I Guerra Mundial de péssima memória), são cinco os mortos e quase três as centenas de pessoas infectadas pela doença-dos-legionários. Suspeita-se que o maná desse mal provirá de uma torre industrial sita em Alverca. Vaporizada, aquófila e eólicotransportada, a bactéria não dá sinais de ficar por aqui, que é como quem diz por ali. O restante Ribatejo e o demais País esperam tão-só que a mortandade não cresça e que os internados convalesçam total e plenamente. Assim seja.
Quanto ao tal ano de nascimento do nosso Jornal, rezam as efemérides coisas notáveis. Nem efemérides seriam, aliás, sem notabilidade factual. Tenho carteira de exemplos.
No próprio dia 8/XI/85, o exército colombiano tomava à força o Palácio da Justiça, que os guerrilheiros haviam ocupado. Saldo: cem mortos. Seis dias depois, na mesma fatídica pátria do grande Gabriel García Márquez, dá-se a erupção de uma cratera (a Arenas) do vulcão Nevado del Ruiz. A consequente avalanche de lava, lama e rocha com 104 metros de espessura inumou a cidade de Arnero. Saldo: 23 mil mortos.
Esse Novembro/85 é também, e ainda, o mês da cimeira Reagan/Gorbatchev, na alegadamente neutral Genebra. (Fonte: Cronologia do Século XX, N. Williams, P. Waller e J. Rowett, Círculo de Leitores, Julho de 1999.)
Por cá-Portugal, o ano de 1985 é o da demissão de Mota
Pinto, a 9 de Fevereiro, da presidência do PSD, sucedendo-lhe no lugar aquele que é hoje (dizem) ministro dos Negócios Estrangeiros: Rui Machete. Duas exactas semanas depois, a 23 do mesmo mês, nasce o partido de inspiração eanista – o efémero PRD de neutra e/ou insulsa memória. A 19 de Maio, a rodagem do carro vale a Cavaco Silva o poder laranja, na Figueira da Foz. O Tratado de Adesão à CEE é assinado a 12 de Junho. A 25 deste mesmo mês, Soares dissolve-se de primeiro-ministro, fazendo o mesmo a Assembleia da República. Um exacto mês antes do primeiro número de O Ribatejo, a 8 de Outubro portanto, o PSD de Cavaco vence as legislativas com maioria simples, sendo posteriormente empossado um Governo minoritário. O ano contempla, ainda, a inauguração do muito comentado (e gozado) Centro Comercial das Amoreiras, em Lisboa, cidade em que se regista uma patusca série de incidentes relacionados com a exibição do filme Eu Vos Saúdo, Maria, de Jean-Luc Godard. (Fonte: Portugal Século XX – Crónica em Imagens, coord. Joaquim Vieira, Círculo de Leitores, Dezembro de 2000.)
Assentemos isto: O Ribatejo não nasceu sozinho em um nem para um mundo deserto. É texto com contexto, este menino paginado. A seu propósito, é curial a seguinte notação: 29 anos depois da primeira luz, a publicação teima na independência e no livre pensamento que a fizeram nascer. É um não-alinhado por natureza, por vocação e por destino. Tem (r)existido sempre, ventos vindo e marés subindo, outra arma não usando que a da liberdade responsável. A ética deste semanário, de mãos limpas sendo como é, nem usa luvas nem recorre a pinças. Talvez por isso pontualmente incomode certos sectores cujos factores (ou fautores) não gostam de espelhos, muito menos dos lavados.
Falando por mim só (que é aliás o que sempre faço, nesta página como em todas as outras da minha vida), eu cá acho mesmo a sério que O Ribatejo foi (Eanes que mo perdoe) o melhor nascimento do ano 1985 d.C. E o melhor renascimento de cada ano a cada aniversário, também.
Tudo o que sobredito deixo, vai e fica, por sincero e limpo, assinado com o nome que, por minha boa fortuna, herdei de meu Pai. 

10/11/2014

Entrada 56 do caderno 16 da série Leite dos Santos

56


Leiria, tarde de 11 de Maio de 2013, sábado




Um restolho carbónico de estorninhos ferve nata de sombra
em panorama de pinhal-barragem, certo dia além do Tempo
em que estou de pé no esquecimento como um crucifixo
ou um cão dos que aos donos ardeu a casa toda.
Quais duas jóias de vidro preto, as moscas zaranzam
no ar parado, o proboscídeo ar do Verão estancado.

Quando paro para reler a primeira estrofe do 56,
sorrio à evidência demonstrável de como
anda um homem a criar uma folha
ou uma falha
para isto.
Sendo isto

o trabalho dos armadores de ferro nas casas que começam,
algumas arderão de fogo vivo, outras do mero mortal Tempo,
príncipes que bordam o fundamento da cofragem,
um mês entre a Fontela e Vila Verde trabalhei com eles,
um deles ofereceu-me sopa da dele,
retribuí-lhe com um pedaço de queijo-ovelha-cabra,

conversámos na paragem de almoço,
pertíssimo o Mondego morria em pura glória,
pura glória é quando qualquer coisa em ti
se torna atlântica para sempre, qualquer coisa que,
como todos os do ferro, que não de ferro, sabemos,
dura pouco. 

06/11/2014

Rosário Breve n.º 381 - in O RIBATEJO de 6 de Novembro de 2014 - www.oribatejo.pt

Só meia boca esta semana

As chuvas regressam no dia em que dois dos meus últimos dentes naturais se avariam – parece-me que sem outro remédio que o de expor-lhes ao sol as raízes. Metade da boca fecha-se-me em si mesma, concentrada toda no intuito de não assanhar mais ainda aqueles dois focos de dor latente. A outra metade faz pela vida: por ela ingiro, por ela profiro, por ela não tanto me firo.
Enquanto isto, a bátega pluvial faz-se harpa no mundo visto desde o terceiro-andar do convalescente. O vento ajuda à festa do alumínio, vergando a cerviz dos choupos, tremulando a labareda dos cedros e descascando a sarna aos plátanos. Os carros patinham nos lagos instantâneos das rotundas. Como dedadas, as folhas mortas digitam os terreiros, juncam os pátios, acolchoam os bancos desertados pelos velhos. Os gradeamentos rangem aquele reumatismo tão próprio do metal exposto ao público. É tudo de uma beleza soturna: e menos soturna e mais bela seria, caso eu pudesse acudir-lhe com a boca toda.
Procedo portanto por estes dias ao mesmo a que procede o meu País: de traseiro sentad’oxidado, espero melhores dias. O televisor arde de manhã à noite como uma lareira fria. Por ele perpassam as mentiras eufóricas de Wall Street, as (ameri)canalhices do costume: os derivados, os lixos tóxicos, a Crise – e as suas marionetas do lado de cá do mar: a platinada Lagarde do FMI, o peixe-balão menos durão do que barrosão, o escol de bruxas & bruxelas que, sob a mentira nada pia da Democracia, fossam a ditadura de facto da miséria obrigatória, a começar pela moral e a acabar na dos vãos de lojas fechadas sob cartões frigoríficos.
Aproveito uma nesga de sol para me fazer à rua. Deixo amornar a bica, sorvo-a por meia beiça. Fumo pelo lado da boca como os pescadores dos postais ilustrados. Leio metade do jornal, presto metade da atenção à eterna repetição do mundo em diferido perpétuo. E é em unto de esperança de que não seja preciso arrancá-los que torno a casa a horas do antivinhótico e das papas-de-leite com poalha de canela.
Por há anos não ter em casa cão ou gato, fazem-me companhia o Jorge Jesus e o Crato. Por só a mulher ganhar para pão & tabaco, faz-me muita pena a pobreza do Cavaco.
Derivo pela habitação, por assim dizer, em éter: espero quem e o que não prometeram vir. Foi-se a nesga de sol. Enchumaçado a chumbo, o céu de noroeste indefere o esmalte das coisas – e o pombal de dias bons, hoje transido e famélico, recolhe aos nichos secretos onde a força aérea da passarada resiste à bélica invernia natural. Cerro os estores da sala, anicho-me na colcha pulguenta de há tantos anos ex-dentários e dormito como um idoso preso pelos arames das horas ao torno das décadas, sonhando-me nada menos do que Albarran-Homem-da-Embalagem-Prateada.
(Mas na verdade sonho mas é com nada.)




Canzoada Assaltante