Pouca-terra
Sou maquinista da CP.
O meu Avô paterno foi da primeira geração
de condutores de carros-eléctricos de Coimbra, vão lá já quase cem anos.
Eu fiz subir a fasquia dos anais
familiares: os eléctricos, afinal, estão para os comboios como os legos da criançada estão para os tijolos
a sério.
O meu Avô teria fartas, largas &
sobradas razões para orgulhar-se deste neto. Só não se orgulha de facto por ser
difícil o trabalho do orgulho ao cabo de 86 anos de morto.
A minha profissão reitera a vocação viária
dos destinos: de apeadeiro em apeadeiro até à estação terminal.
Conheço as luzes na noite. Conheço a luz
diferente que a noite é. Conheço o país dessa luz, esse país nem sempre lunar.
Conheço os suicidas: o olhar aberto deles ante o touro da máquina.
Sei como verdade que é a máquina a
locomotivar-se a si mesma, não passando eu de espécie, por assim dizer, de
alfaiate eléctrico: o mais que faço, é estar atento aos botões.
Como de estrelas molhado o firmamento
nocturno, de tíbias gambiarras as populações no veludo da ferrovia anoitecida:
enfrento isso, guiador da férrea lombriga.
Já fiz muito regional, muito intercidades.
Certa histórica vez, cheguei a fazer Espanha-quase-quase-França. Era no tempo
das malas-de-cartão: hoje como bidonvillemente
então, portanto.
Acordei vezes talvez de mais em dormitórios
transitários da Companhia: mas o que é que na vida não é dormitar?, mas o que é
que na vida não é transitar?
Os casamentos que contraí entretanto, à
maneira de gripes periódicas, foram-se-me na pouca-terra-muita-areia do
costume: marido ausente a horas certas só pode dar ou turnos ou cornos.
Coisas gastronómicas que por causa do meu
ofício sei bem mais do que o gastrófilo senhor Armando Fernandes: o frango
guisado com massa no Alfa de Alfarelos; as favas com presunto de Mangualde; o
toucinho à Senhor Cristo do Barroca de Taveiro; a francesinha verdadeira de
Campanhã; o panrico-com-margarina-de-sabor-a-manteiga-dos-ricos de Vila Franca
das Naves; e a regueifa coimbrã que a minha ti’ Maria da Estação (Velha) de voz
finíssima apregoava na mesma e exacta Coimbra-B do filme Capas Negras protagonizado pela divina Amália e pelo estentóreo
Alberto Ribeiro.
Coisas oficiais, estas: entre mentiras
crónicas (minhas) e alheios veros interstícios ferrobiográficos.
Sou maquinista da CP – é mentira.
O meu senhor Avô foi eléctricomotriz – é
verdade.
E a linha CP de Santarém vai ser
interrompida pelo motim histriónico que num momento de nervos o senhor Ricardo
Che Gonçalves Guevara anunciou à Cidade & ao Mundo por causa das encostas-barreiras
da capital do Ribatejo – é mentira. (Olha, Ricardito, vai-lá-vai, que os meus
botões não contemplam travões.)
Os autarcas de hoje (não todos, mas tantos,
lego de brincar por tijolo a sério)
fazem muita palhaçada desengraçada, coitados. Corro-lhes os quintais e
devasso-lhes os pátios. Nunca me esqueço de agradecer-lhes o tanto rir que me
fazem. Gosto deles assim pequenitos, tipo aqueles ranchos de marquesmendes & antóniosvitorinos que de bibe, patrulhados à proa por uma
educadorazita anoréxica e à popa por uma contínua de joanetes inflacionados
como repolhos, nos ensinam por essas ruas que a vida sempre creche e aparece.
De Santarém, o senhor herdeiro caçula do
Moita de fraca memória determina excitações pueris do género fala-fala-queu-touta-ouvir.
Nasceu, coitado, apenas em 1975.
De modo que se lhe perguntarmos, à maneira
do BB do laçarote, onde estava ele no 25 de Abril, a resposta só pode ser
equivalente ao sítio onde está hoje: que é lado nenhum.
E para Santarém, esse lado nenhum é
terra-pouca a mais.