Queixa
no País da Insónia
Não sei se é a má-sina a perseguir-me, se
sou eu a persegui-la a ela. Talvez ambas as coisas. No caso presente, falo-vos
do putedo que me não deixa dormir. Explico-me.
Na antepenúltima cidade em que vivi, a
minha casa (mas só o descobri depois de arrendá-la) era precariamente vizinha
de uma casa-de-alterne. As madrugadas eram o calendário mais hostil do dia. As
gajas, mais os lenocidas que as parasitavam e mais os deserdados de pulseira de
lata que as frequentavam – encenavam e protagonizavam altífonos histerismos de
navalhada, protestos de amor a vintes e a cinquentas, forrobodós de
cassete-pirata sem ballet nem rose. Um ultraje pegado. Pouco adiantava chamar as “ótoridades”.
Quando vinham (se vinham), pareciam
pedir ensonadas desculpas às senhoras meretrizes, invariavelmente espécimenes
de brasileiredo do mais chunga, tisnadas do esterco daquela maquilhagem contrafeita
de feira e armadas de garras envernizadas de amarelo-pus e escarlate-cirrose.
Nunca havia detenções, nunca havia autuações. Nada. Só quando aquele circo ia
dormir para algum remoto apartamento-galinheiro é que a civilização voltava à
má-hora dos meus aposentos. E eu ficava com o bebé da insónia nos braços, roto
para o resto do dia até ao vira-o-disco-toca-o-mesmo da madrugada seguinte.
Na cidade ulterior, vivi em paz: como no
bairro também moravam senhores médicos e senhores juízes, o gado-de-aluguer não
accionava por ali o taxímetro das virilhas. Dormi muitas santas noites nesse
quartito sem mulher nem renda excessiva.
Há três anos e picos que vivo nestoutro
burgo. Foi bom. Foi bom até este malfadado mês de Agosto. É que o putedo
voltou. A prostituição-de-giro sitiou a minha rua e as circunvizinhas. Toda a
noite é por aqui um carrossel ignóbil de carros tripulados por energúmenos das
obras para quem o Brasil é uma espécie de quimera com direito a caipirinha
falsa e a rodízio de varizes roxas como o manto do Senhor dos Passos. Isto
agora onde não durmo é um bairro-da-tijuca. As alvoradas amanhecem juncadas de
lixo. Há batidelas nas viaturas dos trabalhadores sem garagem que, como eu,
tiveram a má-sina de ali se aquartelarem. O sotaque carioca gargalha
obscenidades goianas até às cinco, seis horas da matina baiana. E já sabeis
como é: pouco adianta rogar às “ótoridades” a esmolinha de por ali rondarem
profilacticamente. Elas vêm mas é o carago. Devem ter medo daquelas unhas.
Posso parecer-vos xenófobo e misógino.
Oxalá que sim. Conheço poucas coisas tão degradantes como a privação do sono.
Talvez a fome. Talvez o desGoverno (este como o anterior, o anterior como o
próximo). Podem parecer-vos ofensivas as minhas palavras. Oxalá que sim. Quero
ofender. Quero vilipendiar. Quero dar troco. Quero dormir.
É claro que não tenho pensado noutra coisa
senão na utopia de outra casa noutro bairro. Talvez de outra cidade, até. De
outro país, não. Não posso. Este é meu. Só tenho este. Não vale nada mas só
tenho este. E só quero este. Hei-de resistir nele a tais malfadados e sórdidos
despojos de império colonial de pacotilha.
A não ser que ele, o meu/nosso País, vá de
vez, como tem ido, com as putas. Se for o caso, o melhor mesmo é emborcar umas
caipirinhas e, para as rapidinhas, desembolsar uns cinquentas, com sorte uns
vintes.
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