Xelinha
x 70
Terça-feira, 4 de Fevereiro de 2014, onze
horas menos alguns minutos da manhã – a minha única Irmã faz setenta anos. A
prole dos meus Pais começou, portanto, a uma sexta-feira bissexta. Davam as
onze horas.
Única menina e primeira de sete, viu-se
depressa entregue à condição de Irmã(e) dos seis pimpolhos subsequentes. Eu,
vinte anos depois para sempre, que o diga: porque sétimo, porque último e
porque escusável.
Ela foi a rosa-perpétua do nosso Pai,
senhor que se quedava apreensivo sempre que, mirando-a em prisma de
pedra-filosofal, não percebia por que motivo, tendo ele em cadinho de crisol
crismado a ouro o sol, fez dela ainda mais seis réplicas em latão. Misérias do
desejo progenitor, enfim.
Foi ela também, em luz-íris a mais
caleidoscópica, a sombra duplicada da nossa Mãe n.º 1, a cuja velhice terminal
amparou mais em encanto de Irmã do que enquanto Filha.
Pós uma mocidade de chitas pobres,
remendados sonhos, bailes fugazes e ingénuos platonismos de cine-magazine, a
vida deu-lhe entretanto, través o concurso carnal de um quase assustado
alto-beirão de olhos bonitos, dentes perfeitos e nome José Maria, uma menina e
um menino. As fotografias da época que viu tais nascenças comprovam sem esforço
e com glória o clarão capilar-tritíceo dos rebentos: dois cortazàrianos “relâmpagos de trigo”. Ficou doida por
eles, doidice que, aliás, os anos não abrandam, antes extremam. Com o
nascimento da neta, aqui há uns pouquíssimos anos-segundos, viu-se na posse de
um tesouro incalculável, que indefessa e avaramente resguarda em vigilância de
escopeta municiada a zagalote grosso, atenta em pura raiva aos bandoleiros de
encruzilhada-de-alminhas sob o luar sinistro que o heterónimo-mor da Vida (o
Diabo) gosta de entenebrecer riscando na pedra as cuneiformes pègadas da cabra
do Assombro.
Em moça, cantava – e então, a filomela toda
dela rouxinolava dramalhões de fado menor em redondilha maior, paixões lúgubres
e fatais relativas àquela Carmencita em
revoadas pícaras de ciganos e novelescas fugas a cavalo través montes com
cartão cénico por fundo e de uma poética-de-cordel por insígnia.
Sempre tomou uma taça de espumante por ano
– era pelo nosso Natal pagão, quando, à mesa, todos éramos vivos e morrer era
uma coisa que só lá fora, coitados dos vizinhos.
Mestre nunca amável e jamais afável, o
Tempo, por agravo, a todos nos amestra e resigna sem brandura nem apelo. Cada
manhã se faz tarde, sendo a noite mais certa do que a tal improvável
perpetuidade de umas tais rosas provadas. O que não posso, porém, é deixar de
sorrir ao acaso de, às exactas onze horas deste Fevereiro-4, uma fresca frecha
de sol vir pelo ar varar a cinzura februária e a empena da casa em frente, de
pronto rutilando de jóias vivas os pardais ao beiral dela inscritos como
sentinelas gráficas.
Sim, sorrio à imagem pensada da netita da
minha Irmã(e), criança que nem sabe, mas há-de saber, a sorte que houve em ter
começado a nascer não há meros três mas há precisamente setenta anos, ainda a Carmencita congeminava a fuga – como tudo aliás acaba fugindo, menos o amor invencível
que temos por aquela que a cantava.
2 comentários:
Que belíssima homenagem. Sublime este texto! Parabéns a ambos, por razões diferentes, obviamente.
Por ela, obrigado, Passarinho.
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