Rio Sabença
Nos tempos mais recentes, tenho sabido abster-me de
comentar por escrito a tragifarsa pulha da política à portuguesa. Por razões
curiais e duas: uma, por higiene mental pura e simples; outra, por não querer engrossar
o lote de comentadores e de “tudólogos” que infestam os jornais, a internet, a
rádio e a televisão, chusma quase invariavelmente abaixo de medíocre que me
levou a tornar-me num especialista do “zapping”.
Alheado (mas não alienado) dos fedelhos da tríade
PSD-CDS+PS (a quem Cavaco instigou a “salvação
da Pátria”, assim de facto e deveras exortando aos gatos a convalescença
dos ratos), salva-me diariamente a boa sorte de ter perto da porta um rio que
passa e fica. Todos os dias o abeiro. Mirando-o em silêncio, permito-me
reiterar a volúvel essência da transitoriedade. Da banda d’além, panos de relva
bem cuidada verdejam ao sol. A luz resulta em puro ouro açucarado à língua dos
olhos, que as águas vitrificam aos pirilampos numa hialurgia sem cotejo possível.
Mães jovens infantam de carrinhos-bebés o areal dos passadiços. Corredores
calvo-cinquentenários destabacam os pulmões ortopedicamente. Sonetistas
concorrendo a prémios município-literários florilegiam rimas difíceis e vácuas.
E homens-sexuais discretos cobiçam óptico-lambedoramente o rapazinho que há
muito deixei de ser. Assim, de borla e em graça, me imunizo a vesânias & tristuras,
ostracizadas as fialhescas caganifâncias
do nosso triste cenáculo lesa-pátrio.
Contra o rio que perto passa de onde a casa me fica, nada
pode a esquadrilha de moscas poedeiras do “comentário”. Nada. Ante o eflúvio, sinto-me
natural como a chuva e o pardal. Brandos zéfiros e suaves favónios ventilam-me
a respiração, pacificando-a de uma doçura e de uma paz de que há muito me não
julgava merecedor.
Queiram o meu paciente leitor e a minha formosa leitora
pastar de olhos comigo a cena cardial de tanta serenidade: de oriente, um
congresso de cirros nimba a coalhos o azul-forte do firmamento; a ocidente,
sente-se como se aqui mesmo a mesma ânsia oceânica; do norte, a perenidade
lavada da pedra que encima o repouso terminal de meus Pais; e a sul, a
invencível beleza do Ribatejo e das minhas leitoras.
Nem por um instante se me desatavia a compostura: à
cacolalia-tatibitaite de marcelos, santanas, moitas, sócras, pachecos &
quejandos nadas, oponho um nefelibatismo todo-o-terreno de largo espectro de
acção filantrópica. Chouso sem remorso o meu coração mental a tal escória. A
tais choutos, contraponho, firme, uma passada vertical de vertebrado pobre mas
sério. Vale-me a magna Natura de cartapácio. Álamos, faias, salgueiros &
plátanos perfumam-me em e de uma supina gentileza a mais diáfana. E a simples
visão de um cão a dormir à sombra, pela torrefacção da mais alta hora da tarde
estival, é quanto me basta para ser uma espécie de cenobita sem pecado ou
mandamento.
Nada me custa, por outro lado, reconhecer ante Vós, e de
viva voz, que, assim, nunca, como o meu País, estarei de volta aos “mercados”. Que nenhuma mordomia gatuna
encourarei em arca mealheira. Que nenhuma filha de banqueiro me espremerá o
acne. Que, por assim dizer, jamais me cinhajardinarei em uma
Cascais-wanna-be-Saint-Tropez, benzido de frivolidade e em lustral aparato de
gardénia de plástico. Isto porque: não é que a idade me haja trazido sabedoria
– mas é que me trouxe a arte do desprezo.
Para guarda-rios, convenhamos, já não é pouca sabença,
indo/ficando o longo rio breve da vida idem.
1 comentário:
Mergulhei o olhar nesse rio e nem me lembrei de mais nada! :)
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