31/05/2010

Em breve regresso com a versalhada etc, mas para já o Rosário Breve nº 156

Instruções para ser infeliz


Definitivamente, a primeira instrução para uma boa infelicidade é ser português com livros. Ser-se luso com Mann, Levi, Calvino, Moravia, Céline, Mishima, Yourcenar, Rodoreda, Quiñones, Osório, Belo, Sabino e Martim Codax – não pode ajudar ninguém a ser feliz, mormente num tempeco de chicos zés viegas e zés luíses peixotos e possidónios cachapas e mias coutos que tais mais.
A segunda é ser português com olhos. Ver é uma coisa que prejudica o simples e animal olhar. Quem olha, vive. Quem vê, sobrevive – mas mal. Como em 1984 deixou escrito um poeta doente de Coimbra, “Quem tem um olho, é rei. Quem tem os dois, é abatido.”
A terceira instrução para uma infelicidade diplomada e certificada é ser português agora e já – derredor, as ourivesarias, as mercearias, as alfaiatarias e as demais quinquilharias primam todas por instalações-vídeo que filmam os roubos mas os não punem. Do Código Penal ao Ministério da Educação, aliás, a distância é nula.
A quarta instrução, por aparente paradoxo, remete para a felicidade pura e dura – essa estranha euforia tecnológica que transforma sobreiros em submarinos, partidas em contrapartidas, faxes em licenciaturas e cronistas tristes em parvos alegres.
O resto é o Mundial da África do Sul, José Mourinho, amantes correiodamanhãzáveis do Cristiano em solteiro e viúvos do futuro mais socrático e mais instrutivo.
Nisto tudo, a mãe do D. Afonso Henriques é que tinha razão, pena o gajo ser parvo e de Guimarães.
E feliz, se calhar.



25/05/2010

Tenho escrito mais coisitas, mas para já a crónica de O RIBATEJO da semana passada

Aqui dEl-Gay



Não sei se já vos disse quanto gosto de parar nas ruas para, ante as montras dos estúdios de fotografia, apreciar as imagens dos casamentos – gosto muito, não sei porquê mas gosto muito. Mesmo sabendo que quase tudo vai dar em divórcio e chatices com a filharada, gosto muito. A partir de agora, porém, não sei se vou gostar tanto. Com esta história do casamento gay, não sei não. A culpa (mais uma) é, claro, do Governo.
Atenção, muita atenção: nada me move contra a homossexualidade, nem a fêmea nem a macha. Juro que não. Cada um(a) sabe de si. Mas acho estranho todo este frenesim exibicionista, todo este carnaval genital, toda esta parafernália de beijos lambidos e soutiens em cima de pêlo e tacinhas de espumante em frente à Assembleia da República e aos nossos filhos gerados por via natural.
Entendamo-nos: um homem pode amar outro homem, uma mulher pode amar outra. Tudo bem. Mas o País tem outras urgências bem mais prementes, no miserável momento actual nosso e do Mundo.
Leis? Sim. Contra a corrupção, contra a falência, contra o roubo, contra a imoralidade, contra o tirano e contra o títere contra o lacaio e contra o pato-bravo.
Prioridades? Sim. A favor do pão e da rosa de cada dia contra a falcatrua do TGV, a favor do pequeno emprego contra o grande aeroporto, a favor da educação & saúde & justiça & segurança social contra mais uma ponte entre o sul de nenhures e o norte de sítio algum.
Enfim, pronto: tomai lá, róseos rapazes, e casai-vos ruidosa e pimbamente em alguma capela-RTP ou alguma ermida-SIC ou uma alguma matriz-TVI. E vós, raparigas de imaginária maçã-de-Adão, tomai lá e imitai os langores vestais da Safo e da Highsmith e da Yourcenar e daquela que tanto aviava cavalheiros de smoking como ninfas de chita, a Coisa, não m’alembra agora o nome.
Mas fotografai-vos com os telemóveis, facebookem tudo quanto vos aprouver – e deixai-me, ao menos, as montras com os casais de antigamente.

19/05/2010

Rosário Breve nº 153 - www.oribatejo.pt - 14 de Maio de 2010

Confissões e penitências



À histeria colectiva do Benfica juntou-se a histeria multitudinária da vinda do Papa.
À naftalina da euforia encarnada juntou-se, portanto, o bafio ultramontano de um catolicismo que continua a preterir Darwin em prol da costela de Adão, que teima em negar o holocausto da SIDA e a ver no preservativo uma espécie de dedo mole do Diabo, como já outrora deixei dito algures.
Confesso: comove-me um bocadito ver as escórias gentias do Quinto Império dependuradas do monumento à Rotunda do Marquês por causa do Benfica.
Confesso: enternecem-me os rosários de gente desempregada à berma-estrada terçando bandeirinhas de euro-cristo à passagem do papamóvel blindadíssimo.
Mas por igual confesso que não sei se somos, nós Portugueses, uma História mal contada ou uma piada de mau-gosto.

01/05/2010

Rosário Breve nº 152 - www.oribatejo.pt

Leituras para bem desligar o televisor

O silêncio é, no processo político, uma fonte documental tão importante como o discurso. Aquilo que se esconde está em luta com aquilo que se ostenta.”
Palavras sábias, estas que o professor Adriano Moreira publicou em 1977 no entrecho de O Novíssimo Príncipe (Editorial Intervenção, Braga/Lisboa). Tenho usado o lápis para cristalizar esta e outras citações da análise que o velho tribuno fez à quase-Revolução de Abril de 1974. Estoutra, por exemplo: “A Pátria não tem processo de inocência. Reflecte todos os actos dos seus filhos.” E esta ainda: “O arrependimento não mata o gosto do proveito.”
Tenho aproveitado esta e outras leituras recentes. Quero partilhá-las convosco, referindo-vo-las. A O Príncipe de Maquiavel, juntei Kaputt e Técnica do Golpe de Estado de Curzio Malaparte. Duas boas madrugadas me bastaram para levar a cabo a leitura de O Obelisco Preto de Erich Maria Remarque. E nos próximos dias vou dar A Volta ao Mundo com Ferreira de Castro.
E então? Então, ler é preciso para que o televisor siga saudavelmente desligado. Tenho caído de mais na asneira de o ligar logo de manhã. Aos gritos caça-táxis da Júlia Pinheiro e aos saracoteios papa-reformas do Goucha, sofro (d)a comissão par(a)lamentar de “inquérito” ao caso da frustrada compra da TVI. Vi o rapaz Penedos, anafadinho e ortoépio, a ser senhordoutorado pelas e a senhordoutorar as figuras que nos deputam. (E nisto do “deputar” vêm muito os tais “filhos da Pátria” do professor Adriano, não vêm? Vêm.) Vi outra vez o Vara (curiosa homonímia do substantivo colectivo da língua-também-pátria). Vi aquele que dizem sobrinho de não sei quem Soares. Vi até desistir de olhar – embora continue vendo perfeitamente, até sem cangalhas.
A solução? Ler: Moreira, Malaparte, Remarque, Castro. O problema é a minha mulher.
Chega a casa à tardinha. Vem estafada do trabalho. Sirvo-lhe um refresco na mesinha em frente ao sofá. Ela pega no comando da televisão. Liga. E pronto. Tudo se deteriora rapidamente. Pego num livro e fecho-me no quarto em silêncio, que agora vós podereis (re)citar como vera “fonte documental tão importante como o discurso.”

Canzoada Assaltante