É bem ou mal falar em público de um morto?
Depende do que dele se diga.
Depende da letra e da cantiga.
Mas é bem ou mal falar em público de uma morta?
Não digo de uma defunta pessoa
mas de uma morta Revolução?
O Povo não morreu
está só
embora muito
amortecido.
O Povo vive ao semestre.
Foi
aliás
um contragolpe de mestre:
seis meses no centro de desemprego
outros seis à caixa do hipermercado.
Mas canta-se o fado.
O povo unido nunca mais será contratado.
Uma só no cravo
mil e uma na ferradura:
ou é vocação de escravo
ou de cavalgadura.
Direito ao voto?
Pois muito bem.
Em quem eu boto
botam contra cinquenta e cem.
Mais a abstenção.
Mais a privatização.
Mais a globalização.
O Iraque não é aqui nem ali.
É Alá
Graças a Deus.
Assoa-te
abençoa-te
e passa.
Angola já foi mas já não é.
Moçambique e Cahora Bassa
mais o preto da Guiné
ao pé de quem nascíamos portugueses de 2ª.
Já não há anedotas nem trocadilhos.
Já nem fazemos amor
nem filhos.
A caderneta de poupança
tem um zero tão à canhota
que só pode ser cobrança
pró-aeroporto da Ota.
Ah sim! E também o TGV
p’ra irmos mais depressa
de nenhures a lado algum.
Saia um rabo de bacalhau
e uma cabeça de atum!
Como quase tudo em Portugal
(santo País etc. e tal)
até a barragem do Alqueva
chegou 33 anos atrasada:
para afogar a Revolução não
era precisa tanta água.
Bastava bem esta nossa mágoa
este nosso desconcerto perante nós ao espelho
o lento olhar enevoado pelo primeiro cabelo branco
pelo segundo pelo terceiro pelo último.
Somos livres em silêncio.
Somos livros que ninguém lê.
Também
ninguém gosta de ler.
Ninguém escreve
a não ser SMS
que isto de ter telemóvel é o que mais apetece.
Camões fora do ensino
trocado pelo best-seller do gajo mais pequenino.
Fernando Pessoa para quê
s’a gente tem olhos mas não vê?
Eça de Queiroz?
Que estopada que impingem à indiferente criançada
à geração morango-açucarada.
Muito melhores são
o cagadonald’s e o franchising redentor
q’a gente p’ra saber inglês nem precisa de professor.
E no entanto
ó meu País
meu amor
meu dia de há minutos
minha noite de há séculos
minha luz azul na manhã de ouro
e no entanto
nós somos livres
livres como o pássaro molhado pela chuva que poisa
quando quer
e quando quer levanta voo
mesmo que para emigrar
livres como a memória fresca do inocente
a memória do ser que é a pessoa entre a demais gente.
Cada um é mais um menos nenhum.
Cada homem português.
Cada mulher portuguesa.
Cada velho devastado pela incongruência de tanto amor por ti, Portugal.
Cada criança com seu alfabeto de solidão.
Cada duas crianças com sua aritmética de solidariedade.
Somos a terra a aldeia a vila e a cidade.
Somos o País que toca música no piano do mar.
Somos ainda nós quando nos lembramos.
Talvez não sejamos bonitos
nem ágeis
nem velocipédicos
e muito menos enciclopédicos.
Somos gente.
Todos temos 33 anos.
Dizem que era a idade de Cristo.
Boa idade para uma Revolução
boa hora p’ra pensar nisto.
Somos Portugueses: gente que
às vezes
por exemplo num cine-teatro
olha para o lado e não se vê só
e conta
um cravo
dois
três
quatro.
Caramulo, tarde de 24 de Abril de 2007
3 comentários:
Belíssimo. Para não variar.
E o que não faltam por aí são cine-teatros!
lindo, amigo. bj
Gostei muito!
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