16/01/2006

ALMANAQUE VILÃO - 0. Stum-Stum

Não sou deste mundo mas não há outro.
Há outros sítios mas são iguais a este. Uma capela (com sorte, uma igreja), uma rotunda, uma pastelaria, uma escola e um campo da bola. Perto, uma vila, que da aldeia se distingue pelo quartel de bombeiros, a farmácia e a segunda pastelaria.
Não sou nunca de nenhum aqui.
Não faz mal nenhum. Não faz mal nenhum começar tantas frases por “não”. A minha história também não é diferente, pelo que não pode deixar de ser contada. Isto é – revivida.
É um homem sentado a uma mesa coberta de toalha amarela num sábado à noite. Todas as outras mesas mereceram toalhas idênticas. O empregado aproximou algumas mesas para que os grupos pudessem conversar e tomar café mais juntos. Eu não trouxe ninguém, uma mesa chega-me. Até já cedi uma cadeira. Há um ecrã gigante na parede do fundo. O futebol acabou, o empregado mudou para um canal de videomúsica. Só dá para ver as imagens. A música no ar de fumo é um stum-stum que provém da aparelhagem áudio, caixotes negros suspensos das colunas do bar. O som aleija, mas as pessoas vieram buscar isto. Conversam aos gritos, riem-se aos gritos, descansam aos gritos. Se eu saísse daqui e procurasse outro sítio, pensaria a mesma coisa. Mesmo em casa, a minha cabeça estaria aqui. Disparada pela mesma imaginavisão, a minha cabeça estaria aqui a aleijar-se de stum-stum e de videomúsica sem legendas nem sentido.
Quando me cumprimentam, sou deste mundo. Retribuo, sorrio, digo ou ouço uma graça, informo o retardatário quanto ao resultado do futebol, aceito ou declino uma chávena de café. Hoje, não apareceu ninguém cumprimentável. Vou mais vezes ao sítio das toalhas vermelhas. Hoje vim aqui a este por ser igual ir a outro. Um piano, um sax barítono e dois homens no ecrã. O pianista canta, o barítono tem as bochechas intumescidas. Não os ouço. Cantam e tocam para ninguém. Só há o stum-stum. Não tem mal. Sempre é uma sensação. O som bate nos claustros do peito, as costelas formam um mosteiro com o monge triste lá dentro a ouvir o órgão. E o órgão só ressoa stum-stum. Em torno, a mocidade. Agora diz-se “juventude”. Já não tão juventude assim. Alguns perto dos trinta, outros já bem lá. Deixaram os pais em casa e vieram gritar para aqui. Defeitos em série. Todos muito ocidentais, mas com avós que rezam à lareira. Aqui, hambúrgueres, mas em casa o porquinho na salgadeira. Bons rapazes, boas raparigas, filhos de alguém se não d’algo. Falta pouco para ser amanhã, o que sempre dá para esperar alguma coisa. Um número, uma perspectiva, outro jornal, outro pequeno-almoço.
Esta gente desaparece toda à semana. Vão para as cidades universitárias tirar os desempregos dos futuros deles e delas. Enquanto o sábado dura, trocam mensagens telemóveis com os namorados e as namoradas, que a esta hora estão a aleijar-se do stum-stum deste mundo noutro sítio igual. Não há indivíduos. É uma espécie de lei. Uma espécie de música. As pessoas seguem a lei como se dançassem. Maratonam as vidas. Digo isto porque a minha foi assim. É a indução. Não tarda nada, estou a voar deste sítio e a imagidaraver sequências animadas pelo último mundo possível. Estou a querer dizer isto mesmo. Isto é, dizer mais do que apenas sábado à noite, toalhas amarelas, rapazes, raparigas, colunas, bar, ecrã, pais trancados em casa, bombeiros, pastelarias, campo da bola. E o que aconteceria se eu não quisesse permitir a este mundo a intolerabilidade dele. Isso é algo que já tenho praticado. Agora, hoje, preciso mais disso. Necessito com algum ardor de indivíduos, de filmes com som, de música a sério, de saudações para lá do formal e do formol. De modo que tenho de inventar tudo isso. Sou capaz disso. Já o fiz antes. Não há um método, não há uma receita. Mas há uma fervura, uma temperatura, um istmo, um ritmo, uma ardência, uma cadência – já começou.
Fotografias eidéticas, bioimagens borbulham já no caldeirão craniano. Nem todas prestam. Algumas impor-se-ão. Destacar-se-ão como aparições, revelações de fotografias. Devirão, então, palavras, linhas, capítulos. Numa massa não desprovida de esplendor, baterão asas e hão-de servir-se de todos os truques mais sujos e de todos os pensos mais assépticos para chegar aonde pretendem.
A mim não deve ser, mas, se for, que o seja. Quero assistir. Ainda aqui estou, stum, pronto, stum.


Tondela, noite de 17 de Dezembro de 2005

2 comentários:

Anónimo disse...

Claro que és capaz disso e de muito mais. Quem escreve assim, só pode ser muito capaz. Fiquei com uma dúvida: o que queres dizer com "imagidarave"? Está belo, como sempre. Li por aqui que és triste no que escreves. Não concordo. És arrepiantemente sensível no que escreves. Eu sorrio sempre.

Daniel Abrunheiro disse...

"imagidaraver" - imaginar e dar a ver.
quanto à questão da tristeza, bem, há que lê-la: isto é, respirá-la como resultado da confrontação do mundo (a que, por absurdo, chamamos real) com a escrita.
sei que não me expliquei bem. mas também estou a sorrir

Canzoada Assaltante