Não sou deste mundo mas não há outro.
Há outros sítios mas são iguais a este. Uma capela (com sorte, uma igreja), uma rotunda, uma pastelaria, uma escola e um campo da bola. Perto, uma vila, que da aldeia se distingue pelo quartel de bombeiros, a farmácia e a segunda pastelaria.
Não sou nunca de nenhum aqui.
Não faz mal nenhum. Não faz mal nenhum começar tantas frases por “não”. A minha história também não é diferente, pelo que não pode deixar de ser contada. Isto é – revivida.
É um homem sentado a uma mesa coberta de toalha amarela num sábado à noite. Todas as outras mesas mereceram toalhas idênticas. O empregado aproximou algumas mesas para que os grupos pudessem conversar e tomar café mais juntos. Eu não trouxe ninguém, uma mesa chega-me. Até já cedi uma cadeira. Há um ecrã gigante na parede do fundo. O futebol acabou, o empregado mudou para um canal de videomúsica. Só dá para ver as imagens. A música no ar de fumo é um stum-stum que provém da aparelhagem áudio, caixotes negros suspensos das colunas do bar. O som aleija, mas as pessoas vieram buscar isto. Conversam aos gritos, riem-se aos gritos, descansam aos gritos. Se eu saísse daqui e procurasse outro sítio, pensaria a mesma coisa. Mesmo em casa, a minha cabeça estaria aqui. Disparada pela mesma imaginavisão, a minha cabeça estaria aqui a aleijar-se de stum-stum e de videomúsica sem legendas nem sentido.
Quando me cumprimentam, sou deste mundo. Retribuo, sorrio, digo ou ouço uma graça, informo o retardatário quanto ao resultado do futebol, aceito ou declino uma chávena de café. Hoje, não apareceu ninguém cumprimentável. Vou mais vezes ao sítio das toalhas vermelhas. Hoje vim aqui a este por ser igual ir a outro. Um piano, um sax barítono e dois homens no ecrã. O pianista canta, o barítono tem as bochechas intumescidas. Não os ouço. Cantam e tocam para ninguém. Só há o stum-stum. Não tem mal. Sempre é uma sensação. O som bate nos claustros do peito, as costelas formam um mosteiro com o monge triste lá dentro a ouvir o órgão. E o órgão só ressoa stum-stum. Em torno, a mocidade. Agora diz-se “juventude”. Já não tão juventude assim. Alguns perto dos trinta, outros já bem lá. Deixaram os pais em casa e vieram gritar para aqui. Defeitos em série. Todos muito ocidentais, mas com avós que rezam à lareira. Aqui, hambúrgueres, mas em casa o porquinho na salgadeira. Bons rapazes, boas raparigas, filhos de alguém se não d’algo. Falta pouco para ser amanhã, o que sempre dá para esperar alguma coisa. Um número, uma perspectiva, outro jornal, outro pequeno-almoço.
Esta gente desaparece toda à semana. Vão para as cidades universitárias tirar os desempregos dos futuros deles e delas. Enquanto o sábado dura, trocam mensagens telemóveis com os namorados e as namoradas, que a esta hora estão a aleijar-se do stum-stum deste mundo noutro sítio igual. Não há indivíduos. É uma espécie de lei. Uma espécie de música. As pessoas seguem a lei como se dançassem. Maratonam as vidas. Digo isto porque a minha foi assim. É a indução. Não tarda nada, estou a voar deste sítio e a imagidaraver sequências animadas pelo último mundo possível. Estou a querer dizer isto mesmo. Isto é, dizer mais do que apenas sábado à noite, toalhas amarelas, rapazes, raparigas, colunas, bar, ecrã, pais trancados em casa, bombeiros, pastelarias, campo da bola. E o que aconteceria se eu não quisesse permitir a este mundo a intolerabilidade dele. Isso é algo que já tenho praticado. Agora, hoje, preciso mais disso. Necessito com algum ardor de indivíduos, de filmes com som, de música a sério, de saudações para lá do formal e do formol. De modo que tenho de inventar tudo isso. Sou capaz disso. Já o fiz antes. Não há um método, não há uma receita. Mas há uma fervura, uma temperatura, um istmo, um ritmo, uma ardência, uma cadência – já começou.
Fotografias eidéticas, bioimagens borbulham já no caldeirão craniano. Nem todas prestam. Algumas impor-se-ão. Destacar-se-ão como aparições, revelações de fotografias. Devirão, então, palavras, linhas, capítulos. Numa massa não desprovida de esplendor, baterão asas e hão-de servir-se de todos os truques mais sujos e de todos os pensos mais assépticos para chegar aonde pretendem.
A mim não deve ser, mas, se for, que o seja. Quero assistir. Ainda aqui estou, stum, pronto, stum.
Há outros sítios mas são iguais a este. Uma capela (com sorte, uma igreja), uma rotunda, uma pastelaria, uma escola e um campo da bola. Perto, uma vila, que da aldeia se distingue pelo quartel de bombeiros, a farmácia e a segunda pastelaria.
Não sou nunca de nenhum aqui.
Não faz mal nenhum. Não faz mal nenhum começar tantas frases por “não”. A minha história também não é diferente, pelo que não pode deixar de ser contada. Isto é – revivida.
É um homem sentado a uma mesa coberta de toalha amarela num sábado à noite. Todas as outras mesas mereceram toalhas idênticas. O empregado aproximou algumas mesas para que os grupos pudessem conversar e tomar café mais juntos. Eu não trouxe ninguém, uma mesa chega-me. Até já cedi uma cadeira. Há um ecrã gigante na parede do fundo. O futebol acabou, o empregado mudou para um canal de videomúsica. Só dá para ver as imagens. A música no ar de fumo é um stum-stum que provém da aparelhagem áudio, caixotes negros suspensos das colunas do bar. O som aleija, mas as pessoas vieram buscar isto. Conversam aos gritos, riem-se aos gritos, descansam aos gritos. Se eu saísse daqui e procurasse outro sítio, pensaria a mesma coisa. Mesmo em casa, a minha cabeça estaria aqui. Disparada pela mesma imaginavisão, a minha cabeça estaria aqui a aleijar-se de stum-stum e de videomúsica sem legendas nem sentido.
Quando me cumprimentam, sou deste mundo. Retribuo, sorrio, digo ou ouço uma graça, informo o retardatário quanto ao resultado do futebol, aceito ou declino uma chávena de café. Hoje, não apareceu ninguém cumprimentável. Vou mais vezes ao sítio das toalhas vermelhas. Hoje vim aqui a este por ser igual ir a outro. Um piano, um sax barítono e dois homens no ecrã. O pianista canta, o barítono tem as bochechas intumescidas. Não os ouço. Cantam e tocam para ninguém. Só há o stum-stum. Não tem mal. Sempre é uma sensação. O som bate nos claustros do peito, as costelas formam um mosteiro com o monge triste lá dentro a ouvir o órgão. E o órgão só ressoa stum-stum. Em torno, a mocidade. Agora diz-se “juventude”. Já não tão juventude assim. Alguns perto dos trinta, outros já bem lá. Deixaram os pais em casa e vieram gritar para aqui. Defeitos em série. Todos muito ocidentais, mas com avós que rezam à lareira. Aqui, hambúrgueres, mas em casa o porquinho na salgadeira. Bons rapazes, boas raparigas, filhos de alguém se não d’algo. Falta pouco para ser amanhã, o que sempre dá para esperar alguma coisa. Um número, uma perspectiva, outro jornal, outro pequeno-almoço.
Esta gente desaparece toda à semana. Vão para as cidades universitárias tirar os desempregos dos futuros deles e delas. Enquanto o sábado dura, trocam mensagens telemóveis com os namorados e as namoradas, que a esta hora estão a aleijar-se do stum-stum deste mundo noutro sítio igual. Não há indivíduos. É uma espécie de lei. Uma espécie de música. As pessoas seguem a lei como se dançassem. Maratonam as vidas. Digo isto porque a minha foi assim. É a indução. Não tarda nada, estou a voar deste sítio e a imagidaraver sequências animadas pelo último mundo possível. Estou a querer dizer isto mesmo. Isto é, dizer mais do que apenas sábado à noite, toalhas amarelas, rapazes, raparigas, colunas, bar, ecrã, pais trancados em casa, bombeiros, pastelarias, campo da bola. E o que aconteceria se eu não quisesse permitir a este mundo a intolerabilidade dele. Isso é algo que já tenho praticado. Agora, hoje, preciso mais disso. Necessito com algum ardor de indivíduos, de filmes com som, de música a sério, de saudações para lá do formal e do formol. De modo que tenho de inventar tudo isso. Sou capaz disso. Já o fiz antes. Não há um método, não há uma receita. Mas há uma fervura, uma temperatura, um istmo, um ritmo, uma ardência, uma cadência – já começou.
Fotografias eidéticas, bioimagens borbulham já no caldeirão craniano. Nem todas prestam. Algumas impor-se-ão. Destacar-se-ão como aparições, revelações de fotografias. Devirão, então, palavras, linhas, capítulos. Numa massa não desprovida de esplendor, baterão asas e hão-de servir-se de todos os truques mais sujos e de todos os pensos mais assépticos para chegar aonde pretendem.
A mim não deve ser, mas, se for, que o seja. Quero assistir. Ainda aqui estou, stum, pronto, stum.
Tondela, noite de 17 de Dezembro de 2005
2 comentários:
Claro que és capaz disso e de muito mais. Quem escreve assim, só pode ser muito capaz. Fiquei com uma dúvida: o que queres dizer com "imagidarave"? Está belo, como sempre. Li por aqui que és triste no que escreves. Não concordo. És arrepiantemente sensível no que escreves. Eu sorrio sempre.
"imagidaraver" - imaginar e dar a ver.
quanto à questão da tristeza, bem, há que lê-la: isto é, respirá-la como resultado da confrontação do mundo (a que, por absurdo, chamamos real) com a escrita.
sei que não me expliquei bem. mas também estou a sorrir
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