27/11/2005

O Cedro e a Lua - VII - 9 de Novembro de 2005

HSC, 9 de Novembro de 2005, 4ª feira, 8h38

Névoa densa e respiração fresca na manhã nova. Uma volta oxigiénica à volta do Pavilhão, abrindo e fechando as mãos, imprimindo bem os passos-sapatilhas, respirando fundo e bem. Uma tangerina e uma castanha. Um copo de água e um belo cigarro. AG vai-se hoje embora. AP foi ontem. Ontem, o Artistonitólogo fechou o serão cultural em beleza: depois do O’Neill, três temas de Charlie Parker & Companheiros (Gillespie, Smith, Coleman, Lester e Outros) na rodela do cêdê portátil + um soneto em puros decassílabos do grande Cesário Verde. Depois, cama. Agora, pronto para a quarta-feira.

Mesma manhã, 11h01

Altercação de dois doidinhos na cafetaria dos doentes, primeiro, e depois cá fora, por causa da (des)ordem na bicha para o café:
– Armados em enfermeiros ou a merda, querem ser atendidos primeiros qu’os outros.
– Chiu!
– Chiu?! ‘tou aqui ‘tou a usar as mãos!...
– Só se for p’ra me tocares ó bicho…
– Corto-te às postas, pá, ‘inda te corto mazé às postas!...
– Vai à cona à tua mãe…
– Isso era o qu’eu queria!
– Tens o cu maior q’a cabeça.
– Olha p’às costas, pá, não t’esqueças d’andar a olhar p’às costas…
– Mando-te mazé uma cabeçada na boca que ficas a cagar dentes uma semana e um dia.
– ‘tou aqui ‘tou a usar as mãos!...
– Queres levar agora ou daqui a bocado?
– Pode ser daqui a bocado.

Tarde, 14h25

À hora de almoço, visita rápida do meu irmão Fernando. Trouxe-me fraternidade, esta esferográfica-marcador de cor roxa-gel e dois livros. Um deles é o mais recente de Saramago, As Intermitências da Morte. O outro, de um autor cubano cujo nome está lá em cima no cacifo. Gostei da visita. Também, deve ser porque gosto do meu irmão. Agora, sol da tarde e mais Cesário Verde. Viva Cesário! Obrigado, Fernando.

Mesma tarde, 16h23

A má notícia que às vezes sou, torna-se pior com notícias como a de má hora que há minutos me chegou pelo amigo João Portulez, primeiro, e confirmada depois pelos amigos Adelino Mendes e Zé Gaspar – a do suicídio, ontem (ou hoje ainda, não percebi bem), do bom gigante Zé Marques. Sim, o Zé “Miséria” do Louriçal. Enforcou-se, não se sabe (nem interessa, agora) por que má ideia. Era grande na tamanhura e no coração. Matou-se, morreu. E eu que, há linhas-dias acima, escrevera “Viva a vida!”. Às vezes, não viva nada. Não, de todo. O funeral é amanhã.

Noite, 20h20

Ao fim da tarde, regressando de um copo de café na cafetaria dos doentes, reencontro com CMS, um camarada do primeiro internamento do Artista. É de Barcouço. S. trouxe-me Debaixo do Vulcão, do defuntalcoólico Malcolm Lowry (1909-1957). Lembrar, a propósito do grande escritor, o poema que lhe dedicou o também grande e enorme e imenso e gigante – e nosso – Carlos de Oliveira; ver Trabalho Poético. E uma revelação: um dos dois doidinhos altercadores referidos na nota das 11h01 de hoje era eu. Ou ele: o Artistonitólogo.

Mesma noite, 21h23

Não tanto as coisas que fiz nem as que pretendo fazer – contam agora, mormente, as que faço. Por exemplo, neste preciso instante, sim, isto, escrever. Depois, tomar chá e ingerir bolachas – mas no momento dele e delas: chá-momento, momento-bolachas. Depois-então-já: tostar na cama de sono o corpo. Dentro do son(h)o, resistir às imagens más, propiciar a floresta preta de dormir sem papões nem desamores nem raivas (ab)surdas. Fazer (por) isso, mas já. Parece-me um bom presente, até no sentido de oferenda.

2 comentários:

Gabriel Oliveira disse...

O bom Zé Marques, o "Miséria", continua uma recordação boa.
Não chega, deixemo-nos de lirismos. A mulher e os filhos sabem que isso não chega. Até nós sabemos que isso não chega. Mas foi o que nos sobrou.
A vida às vezes (tantas!) é filha da puta.

Daniel Abrunheiro disse...

Tudo verdade.

Canzoada Assaltante