25/02/2020

CADERNETA PRETA - 34 (alguns trechos)





34. Atropelamento & Presenças


a) Sábado, 21 de Dezembro de 2019


Há coiso menos coisa de 45 anos, deu-se aqui perto, daqui onde escrevo, um atropelamento quase mortal. Peço escusa de indicação mais precisa da geografia – muita gente me reconhece por estas bandas, pelo que decerto lhe não será difícil fazer o B-A-BA de nomes & circunstâncias gravosas.
Foi pois aqui perto que um carro colidiu com o corpo de um rapaz que usava óculos. Culpa de quem, nunca soube. Soube sim que a vítima saiu maltratada do beijo, tendo dormido coma algumas semanas. Ossos, quebraram-se-lhe alguns: uma perna, bacia, costelas, omoplata do lado da perna.
O choque chocou-nos a todos, que éramos meninos sem cadastro trágico. O rapaz não morreu nem ficou deficiente. Recuperou devagar – mas recuperou.
Quase meio-século depois, é aqui que venho tomar o café de sábado. Estive para não sair de casa, mas precisei de alongar músculos, oxigenar-me um bocado de tanta literaparlapatice ensimesmada, reconfirmar na pastelaria o carácter bovino da digestão social.
Há Portimonense-Sporting para a Taça da Liga, ao cabo do primeiro quarto-de-hora o emblema algarvio vence por 1-0 (g.p.).
No mostrador, o pão, muito branco, apetece. A casa é limpa, há escrúpulo de água & sabão nas coisas. O principal índice é sempre os sanitários: se estiverem limpos, a cozinha não há-de está-lo muito menos. Outros pardieiros que frequento, ah sim, são porquinhos sem favor. O urinol sobe às ventas aquele fedor a peixe-piça, os copos acumulam pele antiga nas rachas, a comida embrulha cheiros gasóleos e fénicos, por assim dizer.
(E à primeira meia-hora, autogolo do Sporting, dois-zero para os anfitriões. Portimão é a terra de uma Noémia muito bonita que conheci na faculdade – e mais nada, que esse conhecer não foi bíblico.)

17h55m, já anoiteceu quase por completo. Calor nenhum lá fora – mas também nada antárctico, convenhamos. Uma coisa sei ter feito bem: trouxe comigo o Fialho de O País das Uvas. Gosto da adjectivação do gajo. Estou portanto aconchegado. Há vozearia derredor: sportinguistas chateados invectivando o sôrárbitro – mas é música portuguesa, o que dizem & o como dizem. Os não-sportinguistas, calados como freiras maliciosas, são todos portimonenses de momento. Intervalo, a altivociferante revolta abranda, vem cerveja, vem tinto, não há-de ser nada – como tudo na vida. Eu – que remédio! – escrevo. Trouxe moedas q.b. Talvez leve até pão para casa. Nada planeio. Vou fumar lá fora, perto, muito perto de onde o sangue do rapaz F. foi promanado num estalar ósseo. No azar, acabou por ter muita sorte. Na altura, não havia teste-do-balão, ninguém pode dizer que vinha enfrascado o condutor. O rapaz atravessava a via, distraído talvez – mas não com smartphone que nem havia então, a deus graças. Era filho único. Conheci-lhe o pai, que julgo ter morrido há dois anos, estou incerto quanto a tal.

Está ali uma velha (deve ter mais uns cinco anos do que eu) engraçada. Vestida & maquilhada de preto modernaço, rosto & olhar tipo Nina Hagen, ar de quem já fumou muito knorr-marroquino, chamemos-lhe assim. Rara coisa hoje em dia: em vez de polegarizar o telecoiso, escreve, ela também, num cadernito parecido com este meu, com uma caneta preta como a minha, embora eu mais lápis por vezes.

Estar vivo – sem ser no hospício ou no presídio – tem por vezes seu encanto. Encanto talvez seja exagero, mas pronto, encanto seja. Pão fresco no mostrador, perfume cafeeiro, cerveja fria, ponche quente, bola na têvê, casal preenchendo o euromilhões enquanto suspira sonhos de mata-mandarins, o Fialho gozando com seu assumido decadentismo caricaturante, eu ter moedas q.b. para miudezas reflectoras da minha própria.

2020? Não faço (nem fosso) ideia. É aguentar os caváis. Muito livro para & por ler – + mais algum(ns) por escrever. O costume não é mau de todo. Mau de todo é todo o mal. O bem? Algum venha aos vizinhos de Espanha.

(O Sporting deu carambola à negativa, acabou triunfante de 2-4. Felicidade local de irmãos & cunhados indígenas. Mutismo granítico dos portimonenses provisórios.)

(...)

Arruamentos vãos – e pouco passa das oito da noite. Chuva, nenhuma – tão-só um bafo frigorífico no favónio que soergue do chão pequenos, legíveis lixos. Passo a demonstrar tal legibilidade: : um rectângulo de papel fotocomposto. Apanho-o. É um ex-afixo mortuário.: “Estela da Conceição – 98 anos – Missa de Corpo Presente – 11h30m – Terça-Feira – 26 de Novembro de 2019.” Guardo a notícia para sempre – pelo menos enquanto esta caderneta se não volver em nunca, como é natural que lhe advenha.

A horas silentes
Da pré-madrugada
Fazem-se presentes
O Tudo & o Nada.

(...)






20/02/2020

retalhos últimos da entrada 33 da CADERNETA PRETA


(...)

(Também) em busca da mãe anda uma rapariga. É em um país nevado, muito a norte deste lápis. A região é belamente desolada, desoladamente bela é a região. A mãe, neurodoente, estava sob internamento compulsivo. O país chama-se Televisão, tenho o meu esfinge-do-nilo entrepernas, sentimos ambos lá fora o baile chamado Depressão-Elsa. Estamos bem, obrigado.


Conta ainda os dias descontados,
olha que o relógio é prestamista.
Dele a usura é de alucinados:
o gajo a descontar é um artista.

Culpa & punição? Borda do prato
com elas. Ou, claro, fundo do copo.
Moralóides é que não, não topo,
sobretudo em natalício aparato.

Conheço papelarias anacrónicas, abertas ainda a uma freguesia extinta. Faço por comprar nelas as ferramentas da minha irrisão: lápis de que ainda não preciso, borrachas de que não vou precisar, afiadeiras que sei já oxidadas, cadernos que apesar de tudo, enfim, sempre se fazem caderneta. Preta, claro.

Belas, belas sílabas por assim dizer azuis tremendo como pó ou prata ou deditos arrefecidos de menina. Quero-lhes mansamente, são quanto acumulei nestes primeiros cinquenta & cinco anos.

Chesterton, católico.
Greene, católico.
Joyce, apóstata.
Kafka, judeu.
Pessoa, sabe Deus.

Pontões adentrando a barra, o mar entrando em glória pujante, pescadores-à-linha perfilam o contracéu, longe-longe vai um titanic miniatural rumo ao respectivo gelo-gigante.

*

28 Ingredientes Inesgotáveis & Disponíveis para Cocção de Iguarias a Saborear no Crepúsculo do Corpo, um Dia Destes Vinda a Noite

1

Farrapos de Dublin sonhados por Nora Barnacle, triste em Trieste, quando sem tostão num banco do parque horas a fio à espera do marido;

2

Capotes inteiriçados de lama congelada, sangue, mijo & desespero, esparsos pelas mil ratoeiras a céu-aberto de Verdun ou do Somme, dá no mesmo.

3

Munthe, inventando um bocadito quanto à proximidade clínico-laboral que diz ter tido para com o doutor Charcot, sorrindo ante as duas sílabas por assim dizer azuis de Capri;

4

Aço das cordas tangidas por António dos Santos d’Alfama resistindo à prevista demora do dono;

5

Cachecol usado por Paul Simon na capa do million-maker LP Bridge Over Troubled Water;

6

Restos em prato de ferro da refeição nocturna, em plena pista & à luz da Lua, ingerida por Jack London algures no ingente Yukon;

7

Secretária alta + cómoda idem a que Eça & Pessoa escrevem de pé in saecula saeculorum;

8

Rol de onomásticas heráldicas entretanto extintas mas em melhores tempos ferreamente liadas à terratenência no Sussex;

9

Pente-da-barba de Victor Hugo quando exilado em Guernsey;

10

Últimos tostões do doutor Souza Martins após visita pro bono a barracas miseráveis da cintura lisbonense;

11

Dois guarda-chuvas pertencentes ao operário-filantropo Adelino Veiga encontrados em inexplicável circunstância na rua conimbricense que arvora o nome dele;

12

Fragmento de papel em que está inscrito o resultado ao intervalo do jogo de basquetebol Sport Conimbricense – Ginásio Figueirense no Pavilhão da Palmeira em 1977;

13

Roupeiro da casa de George Michael no dia 26 de Dezembro de 2016, finda a devassa policial regulamentar;

14

Dedal usado décadas a fio (& agulha) pela senhora minha Mãe;

15

Pincel-da-barba ainda com espuma do senhor meu Pai;

16

Comprimidos caídos esquecidos perdidos sob a cama de Marilyn Monroe & achados após devassa policial regulamentar no dia 5 de Agosto de 1962, domingo;

17

Fundo de café-com-leite na chávena de Roberto Bolaño enquanto escrevia a contra-relógio o calhamaço 2666.

18

Um ramo da árvore à esquerda da entrada da Algonquin Bay Public Library;

19

Garrafa de cerveja vazia consumida por João Miguel Fernandes Jorge nas Ramblas;

20

Cesto de morangos deixado por José Abrunheiro (1880-1930) à mulher um sábado de manhã em 1917;

21

Cartão-de-identidade do aluno João Manuel Arcanjo Dias na Escola Preparatória Rainha Santa Isabel, ano lectivo 1974-75;

22

Sapato branco perdido para sempre por mulher morta em acidente rodoviário na Estrada da Beira no segundo trimestre de 1971;

23

Aparelho de telefone desactivado 039-36356 cor branco-marfim, fio curto, com mancha indelével de verniz escarlate correspondente a impressão de indicador direito junto ao dígito 8;

24

Canhoto-de-bilhete para sessão-matinée do dia 1 de Novembro de 1981 (um domingo) do Teatro Avenida (ex- do Príncipe Real), estando em cena O Homem-Elefante, com John Hurt & Anthony Hopkins (NB: um exacto mês depois dos Maugham a 50 paus em Trancoso);

25

Peruca ros’amarela usada por Maria Valéria, actriz amadora da Trupe Iconoclasta & cabeleira-ajudante do Salão Maria de Lourdes, na peça revisteira Toma Cá Desta, em cena no Centro Popular Operário do Calhabé na Primavera de 1975;

26

Carta do Menino Tiago André Lopes da Fonseca ao Pai Natal, ano 1992, apresentada em tribunal como prova circunstancial no âmbito do uxoricídio que lhe levou a mãe para o céu & o papá para a prisão;

27

Single Hello de Lionel Richie com risco na sílaba “whe” do verso “’Cause I wonder where you are”;

28

Fotografia emoldurada de busto de bisavó cega no dia de seu 101.º aniversário, dois meses antes da morte dela, que ocorreu na paz do sono às 04h04m de domingo, 5 de Setembro de 1999.

13/02/2020

CADERNETA PRETA - fragmentos de 33 b)


b) Sexta-feira, 20 de Dezembro de 2019


Não, não pude ir a qualquer dos acampamentos-de-férias do obscuro Mr. Billy Butlin – nem Filey, nem Skeguess, nem Clacton, nem Bognor, nem Minehead, nem Pwllhell, nem Mosney, nem Ayr. Fiquei em casa. Não estou a queixinhar-me. Oh Dolly. Oh Norah. Oh Sheila. Oh Joan.

Em 1981, Calvino cita Queneau: “A História é a ciência da infelicidade dos homens.”
Em 2019, a manhã é um apagão. À maioria, sei-o bem, repugna esta luz de papelão, esta moinha constante, este ter de libertar o interruptor para que a lâmpada faça de sol doméstico & domesticado. Eu adoro. Não preciso de Mr. Butlin.

Incluindo o mês em que perfiz dez anos de nascido, havia em Londres quem (por escrito) chamasse Henry a quem de facto era Harold, e Worthington a quem afinal se chamava Wilson. Um pouco – mas só um pouco – como tratar David por John e Cornwell por le Carré.

Isto não é Trieste, não vejo daqui o azul-adriático. Da janel’alta vejo, sim, o Bolão, os campos mais além dele abrindo peito a Montemor, Figueira, Jersey, Coventry, o Bering enfim.
Esta é a minha pobrinha ortodoxia: ser não-indo, ir sem-estar. Não, não estou a queixinhar-me – apenas respiro o ar da sala enquanto o Gato dorme.
Dezembro a 2/3, o ano vai expirando. O calendário faz-se Inverno Oficial. Começo no próximo Ano Novo o outro livro. Sei o que quero dele & com ele. Nenhuma ansiedade, pelo contrário.

Na Pensão Berlitz, na Casa Borges Porto, na Biblioteca Conde Catalazete, na Confeitaria Preciosa, na Lotarias Victor, na Papelaria Zurich, na Praça Garrett, no Orfanato Lúcia d’Avon, no Café Dédalo, na Alfândega Norte, na Retrosaria Epopeia, no Círculo Tomista, na Loja Aloysio, na Livraria Calvário, no Presbitério Sauliano, na Esquadra Central, na Churrasqueira Mondego, na Joalharia Rivoli, na minha MaterPaterCasa, na Praceta Verde Pinho, na Marisqueira Neptuno, na Garagem Velindro, no Parque Claro, na Alfaiataria York, no Quiosque Lacobrigense, na Óptica Vénus, na Ferragens Luna, na Mercearia Arcelino, no Salão Astral, na Adega Piedade, na Agência Franco, no Infantário Rosicler, no Colégio Sérgio, no Restaurante Estrel’Azul, na Carvoaria Idalécio, na Bijutaria 2000, na Albergaria Nobre, no Canil 1.º de Maio, na Barbearia S. Paulo, no Jardim Marcel, na Tipografia Pessoa, na Desportiva Albicastrense, no Forte Macedónio, na Torre Basileia, na Vidraria Tarzan, na Coudelaria Ascott, na Miudezas Pequim, no Hotel Império, no Largo Martelo, no Mijacão, no Bairro Aquilino, no Cais Juliano, na Avenida Soeiro, no Velódromo Atenas, no Magistério Filinto, na Cave Altamira, no Edifício Tavarede, na Niquelaria Argentina, na Clínica Amália, no Jacob Penhores, no Condomínio 1986, na Vivenda Diana, na Eléctrica Barata, na Doçaria Milano, na Editora Mistério, na Oficinauto Carvalhosa, na Fluvial Arcada, no Estaleiro Freitas, no Anuário Cavalinho, na Panificadora Reis, na Lanificação Zelandesa, no Talho Cândido, no Laboratório Cruz, na Aeminium Fotos, na Galeria Coimbrália, na Religiosa Lamecense, na Tabacaria Sereia, na Escadaria Conventual, no Convento Purpurino, no Pórtico Almedino, no Ginásio Duby, na Imprensa Republicana, no Estúdio Stig, no Diário Paroquial, na Farmácia Esplendorosa, na Sapataria Lorde, no Minimercado Matateu, na Tijoleira Damasceno, na Metalúrgica Platónica, no Banco Salvador, na Florista Clarissa, na Orquestra Brilhantina, na Maravilha Audiovisuais, no Estuário Fevereiro, na Mandrágora Plásticos, na Frutaria Filoxera, no Bar Rotundo, na Peixaria Saldouro, na Ópera Sevilhana, no Palacete Mayor, na Pneumónica Caramulana, no Teatro Avenida, na Queijaria Colorau, na Amorosa Eclesiástica, no Cinema Trianon, na Sanitários Triunfo
– respondi, quando me perguntaram onde procuro a palavra-justa. – E alhures também – esclareci ainda.

Terminei a primeira leitura de Retrato do Artista Quando Jovem na madrugada de 2.ª-feira, 28 de Março de 1994. A segunda, esta noite mesma, 6.ª-feira, 20 de Dezembro de 2019.
O meu Pai morreu um mês menos quatro dias depois dessa primeira leitura. Arderam, entre as duas viagens ao jovem Stephen Dedalus, 25 anos + 9 meses menos oito dias. A existência como somatório de coisas assim. Mas: E a vida – como quê?

Já fez vinte & oito anos + dois meses + 19 dias: a 1 de Outubro de 1981 (uma quinta-feira), em Trancoso, numa loja diametralmente oposta à Barbearia S. Paulo, compro, a 50 escudos o exemplar, livros de Somerset Maugham. De casa, trouxe os dois volumes do Trabalho Poético de Carlos de Oliveira. Comecei a fumar há dias. Num café da vila, tomo a bica e compro dois maços: um Porto e um Ritz. Assim foi que me iludi homem.

Canzoada Assaltante