Homo cuniculus
homini
1. Na madrugada do 29.º aniversário de Fernando Pessoa, 14
bombardeiros alemães descolaram de uma base situada algures naquela Bélgica
então por eles, alemães, martirizada e ocupada. A meio dessa manhã ominosa, as
bombas destruíram uma escola do East End londrino, matando 18 crianças. Pela restante
capital britânica, mais 162 súbditos de Sua Majestade Jorge V ganharam direito
à eternidade anónima dos cordeiros imolados na ara e na era dos impérios. O
bombardeamento de civis é hoje banalíssima coisa de dois minutos entre assuntos
de futebol e frivolidades meias-lecas no alinhamento dos noticiários – mas na
altura foi excentricidade e aberração que parecia e caiu mal, por nada
cavalheiresca nem romântica. O sentimento anti-germânico que já então grassava
entre os ingleses tornou-se amotinante fobia xenofóbica, a ponto de a própria
Família Real, ela própria geneticamente teutónica, ter de abandonar a pesada
nomenclatura dinástica que era a sua para adoptar a hoje ainda vigente. Ou
seja: passou a Casa de Windsor ao renegar-se como parente relativa da
genealógica House of
Saxe-Coburg-Gotha-Hanover-Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg-Hohenzollern.
2. Estes factos de 13 de Junho de 1917 poderiam não ter
visto luz nem haver passado à fria História real. Bastaria que o governo britânico
de então tivesse como primeiro-ministro, não David Lloyd George, mas Pedro
Passos Coelho. O meu raciocínio é simplicíssimo: com o nosso compatriota na
posse da chave do n.º 10 da Downing Street, as crianças do East End não teriam
escola a que ir – e a Inglaterra do primeiro quartel do século XX
subjugar-se-ia sem luta, e com gosto até, aos ditames imperiais e imperiosos da
Berlim do Wilhelm II, à exacta imagem & semelhança do que viria a fazer
Portugal um século depois aos pés da Berlim da Merkel I. Com o tal Coelho na
cartola, claro. Para evitar que a Alemanha nos (dia)rreie morte aérea em cima
dos chavelhos, nada como ser muito austeritário, muito obediente, muito “bom aluno”. Numa palavra, muito coelho, não um pouco lobo. Daí o título
que encima esta crónica.
3. Agora assim: Passos Coelho é um dos meus cómicos
favoritos. Corrijo: Passos Coelho é um dos meus tragicómicos preferidos. Nesta
rábula dos suicidas pós-incêndio que afinal se não mataram, o dito senhor foi
coerente – ele próprio é, politicamente, um suicídio por confirmar. Usando o
mesmo Pessoa que fazia anos a 13 de Junho entre 1888 e 1935, Coelho é um “cadáver adiado”. Só não procria grande
coisa. Aquilo não foi uma mera tirada infeliz – aquilo é um modo de vida. E um
modo de vida é invariavelmente o que resulta da negociação entre o que somos e
o como estamos. As desculpas que depois gaguejou, a mim não me arredaram da
profunda repugnância de imediato sentida – nem do invencível asco; nem da
psoríase fatal que fatalmente me causa a urticária de politiqueiros destes.
4. Na ética jornalística que ainda pratiquei, suicídio não
era notícia, a não ser em casos muito, muito especiais. Exemplo-mor: o caso de Thích
Quảng Ðức. Foi noutro
Junho. Em Saigão, a 11/6/1963, este monge budista imolou-se pelo fogo em
público e em protesto contra a orientação religiosa de Ngo Dinh Diem, eminência-parda
que era, por assim dizer, o Passos Coelho dos vietnamitas em relação a
USAmericanos. Tirante casos destes, suicídio continua a ser matéria merecedora
de discreto pudor. A não ser, parece, que um obscuro zé-ninguém de provedoria
local de misericórdias com veleidades de candidato laranjinha a autarca nos sopre ao pavilhão auditivo um boato
maldoso para arremesso político-partidário. Nesse caso, e para o Coelho, um
mexerico sem fundamento é cenoura que baste. Daí a tragifarsa acontecida aos
olhos de toda a gente. Enfim: Pedrógão é Grande, Passos Coelho é pequenino. Shame on you, sir.
5. Os mortos e os feridos daquela Londres de Junho de 1917
& os feridos e os mortos nossos de um exacto século depois devem ser-nos
credores do maior respeito e da mais assisada e mais condoída discrição.
Invoquei-os tão-só para ajudar a destruir uma comédia triste – triste e infeliz
e coelhamente portuguesa. Foi por isso que fiz por esfrangalhá-la em tiras e em
chiste. É que eu nem em criança, por mais bombocas
com que tentassem seduzir-me, fui muito de ir com coelhos e pais-natais ao
circo. A barraca é que não pára de vir ter comigo. Mas eu sou homem para gostar
mais de pão do que de circo. Daquele pão-nosso-de-cada-dia, não daquele circo
que se monta e daquela barracada que se arma sempre & de cada vez que o Cuniculus descerra a abertura anterior
do tubo digestivo, vulgo boca.