29/04/2016

Ganhar o dia

Aconteceu-me há minutos.
O dia está bonito, claro, de temperatura amena.
Mesmo assim, de retorno a casa, eu vinha meio sorumbático, um quarto melancólico e tristonho a outra quarta parte.
Foi então que o vi: na paragem do autocarro, um rapaz muito novo, mal chegado a adulto. Cego. Completamente cego.
E a mim, que uso óculos, passou-me logo a melancolia.
E foi assim que ganhei o dia.


Leiria, quinta-feira, tarde de 28 de Abril de 2016

28/04/2016

Rosário Breve n.º 454 - in O RIBATEJO de 28 de Abril de 2016 - www.oribatejo.pt



Eurico

Não.
Mas sim.
José Niza.
Luís Eugénio Ferreira.
Eurico Heitor Consciência, agora.
Mas sim é que não: não negarei ao doutor Consciência um obituário ao mesmo tempo triste & feliz.
Triste – pelo lado do sacolejão brusco, da violência estapafúrdia, do escândalo insensato que todo o falecimento de alguém tão merecedor de honra, estima, consideração & elogio nunca deixa de causar. Mas feliz também, senhor.
Feliz – pelo lado de absoluta bonomia que a sua desempoeirada figura, a sua figura alta, egrégia sem favor, ínclita até, esparrinhou por todos (nós) quantos, ou conhecendo-o em pessoa, ou dele beneficiando a profissão, ou a ele-cronista lendo em duas colunas de página-cinco, tiveram a muito (tanta!) boa-sorte de contemporanizar.
Respirámos no mesmo metro-quadrado uma vez única. Foi por uma gala do nosso comum O Ribatejo. Saudei-o como quem sobe. Ele recumprimentou-me como se não descesse. Trocámos mimos. Não trocámos números telefónicos. Isso passou – como tudo passa.
Posso finalmente escrevedizê-lo em voz-alta, agora que ele me não pode ouvi(le)r: foi sempre pela coluna de Eurico, O Não-Presbítero, que comecei a leitura do meu/Vosso Jornal. Mais: fi-lo sempre porque as palavras dele nunca me faziam rir – sorrir sim, sempre, ah isso sim! Ainda esta semana já para sempre pretérita: a mordedura irónica do seu incisivo de propósito mal escondido, sabes tu, Leitor? Aquele sarcasmo nunca humilhante, aquele escárnio nunca gozão, aquele maldizer tão bem dito sempre: e aquela elegância completamente cavalheiresca, de homem antigo que não sabe ser velho, ai!, aquela compostura toda democrática que ele português, num Português forrado de quanto Latim, jurídico ou não, fosse preciso ou não fosse, lembra-te tu, pá, Leitor dele merecido que meu quero merecer – e tudo sempre, mas sempre, para Todos, todos quanto fossem, quantos viessem todos.
Meti-me uma vez com ele. Fi-lo sorrir. Eu sabia que sim, que ele sorriria. Sorriu. Que um advogado com Consciência era abrantino fenómeno só aos fenómenos do Entroncamento cotejável. Ele encaixou sem esgar nem esforço a minha boutade, que simpatia sinalética era. Respondeu-me na crónica seguinte com Abrunhos etc. e tal. Foi das maiores honras da minha vida. Eu era lido. Por ele. Ele respondia ao que eu fingira perguntar.
O doutor Eurico Heitor Consciência viveu acordado a vida toda, 79 anos dela. Espero hoje e aqui, tão-só, que a morte no-lo tenha roubado dormindo.
Dormindo e sorrindo, que é o que precisamente estou a fazer para não desatar a chorar, José Niza. Perdão, para não desatar a chorar, Luís Eugénio. O senhor sabe, doutor Eurico. Não finja que não sabe (fazer) sorrir.
Até para a semana.



21/04/2016

Rosário Breve n.º 453 - in O RIBATEJO de 21 de Abril de 2016 - www.oribatejo.pt

Então e de resto?

0. Se não toda, muita gente saberá que eu, enquanto cronista, só tenho dois assuntos: Ricardo Gonçalves & o Resto. Vou escrever-vos algo desse resto. E esse resto poderia ser maravilhoso, se a vida o fôra também. Não é.
1. Rio Maior, terça-feira, 19 de Abril de 2016, fábrica salsicheira da Nobre. Exaltação dos suinicultores nacionais. Um deles assim: “Enquanto houver um porco em Portugal, não podemos baixar os braços!” Cheira-me que esta malta vai passar o resto da vida de braços no ar como os sinaleiros cabeças-de-giz do antigamente nas peanhas rodoviárias do salazarentismo – pois que porcos, de toucinho ou de metáfora, são coisa que nunca nos faltou.
2. No Brasil também não – vistes Vós aquela degradante circo-instância da votação anti-“presidenta”? Aquele país supostamente irmão do nosso pode ser grande – mas não é grande coisa: como nós não somos. Digo mais: quanto maior o pano, maior a nódoa. Aquilo é uma Angola falando um Português pior. E é mais: a corrupção verd’amarela não é de Esquerda nem de Direita – é ambidextra. E não há (ou não tem) Gabriela que a des-jagunce. Por cá, nós ainda não (nos) imaginamos um José Sócrates presidindo à Mesa da Assembleia da República a “impeachmentar” o Marcel(l)o só por causa de ele alegadamente ler mais livros numa noite do que o dito Sócrates nos tempos felizes da filosofia de Paris à custa do dinheiro do amigo. Valha-nos isso. Mas, se calhar, já disso estivemos mais longe. Já, já.
3. Dr. Jekyll & Mr. Hyde: Bloco de Esquerda versus Bloco de Esguelha. O primeiro é decente, é capaz, tem coisas na cabeça e pernas para andar. Anda por ali humanismo. Anda por acolá decência. O segundo é todavia de uma puerilidade tão risível quão irrisória. Veio agora, o Hyde, com a cenaça/carraça do sexismo gramatical. No intervalo das ganzas, os rapazes do rabo-de-cavalo & as “bêibes” de t-shirt-Che-tàzaver -Guevara entretêm-se no MacDonald’s local a destruir o imperialismo & a escarninhar da heterossexualidade mercê da urgência do antigo BI passar a não sei quê anti-macho. Duas coisas, ó pessoal: a) Eu não quero nem aceito que o meu Cartão de Cidadão passe a ser de Cidadania porque cidadania é substantivo no feminino – e portanto isso é sexismo castrador; b) Sou totalmente a favor da total liberdade de orientação sexual – pelo que rejeito a homossexualidade obrigatória que parecem querer impingir-me-nos só porque é moda. Até por causa disto: com um cartão de cidadania nas unhas, um gajo passa a ter quantos pais? Mais até do que Cristo Ele-mesmo?
4. Já, se não todos, muito(s) nos rimos um bocadito. Chega de risota. O mundo não está para galhofas facetas. O mundo é triste. (A 13 do corrente, fui sepultar um primo-direito. Um primo-direito é um meio-irmão. Dia 13 pretérito, portanto, fui cerimoniar meia-morte minha. Mas adiante:)
5. Eu só quero que um cidadão possa ser mulher à homem sem ter de berrá-lo. Pretendo tão-só que a sexualidade não seja para usar a tiracolo. Ou então assim: que, como no Brasil, lula possa ser no masculino, por mais choco que ande com as berlaitadas sem vergonha do sinistro Cunha local. A corrupção é uma guitarra que só toca quem tem (c)unhas, é ou não é? É.
6. Esse tudo que há nas pequenas-coisas, esse nada tão frequente nas grandes – daí a portuguesíssima & exclama/deprecia/tiva expressão: “Grande coisa!” Olhai: ando pela berma fluvial escrevinhando-vos. Paro. Sou escolhido por um banco de ripas exaustas & falidas sobre que, há uns dias poucos, vi (e, confesso, fotografei) dormindo uma pessoa despojada. Era uma mulher (desculpa-me mas era, ó Hyde-de-Esguelha). Pela comissura ricto-labial dela, azulava ao ar um incisivo podre. No chão, perpendicular à gota de cera da mão pingona, boquiabria-se a caixa-de-sapatos das moedas esmoleres. Foi nesse banco mesmo que me sentei para retocar as últimas linhas, Vossas sempre, desta semana. Senti-me (ou sentei-me) como que em casa. Portugal acontecia de novo após o aguaceiro da média tarde. Esperei pelo fim da crónica. A minha esperança era que a terminação dela viesse feita de um lirismo forte, tinto de azul-azulejo de baixo-forno, de uma mor(t)al gentia, de uma espécie de solidariedade fora de TV-horários ditos nobres como as fábricas salsicheiras. Mas nada. A folha teimava em branco no trecho destinado (ou, no meu caso, destilado) ao derradeiro parágrafo numérico. Eis porém senão quando:
0 outra vez. Eis porém senão quando: algo espavorido, aparece-me crónic’adentro o Ricardo Gonçalves. E então ele assim para mim: “Mas que raio estou eu aqui a fazer?” E então eu assim para ele: “Pois isso é pergunta a que, até hoje, ninguém sabe dar resposta.”


14/04/2016

Rosário Breve n.º 452 - in O RIBATEJO de 14 de Abril de 2016 - www.oribatejo.pt

Tudo e menos alguma coisa

1 Não é por ter descoberto ou inventado a gravidade que Newton não possa jamais ter-se rido de algo ou de alguém. Sensível a maçãs na tola e propenso a sestas à sombra vegetal de macieiras, aquele homem arguto tornou-se definitivamente num verbete incontornável da voragem enciclopédica do Tempo e do Conhecimento.
2 Cervantes, o Miguel espanhol, é outro. Inventou (sem itálico) a figura-gigante do D. Quixote de La Mancha, o inesquecível magriço do elmo de barbeiro que via nos moinhos os papões do vento – coisa que de facto & deveras eles eram & são. A par do seu camarada portuga Luiz Vaz, Miguel, como o Isaac ali de cima e como o Toyota de antigamente, veio para ficar, rastreando na lembrança, a lápis-lazúli, certo trilho imorredouro que acrisola em púrpura essa dimensão esquisita chamada eternidade-até-mais-ver.
3 Cristo, o Emanuel libertário, involuntário rabi voluntariamente não onzeneiro, consta dos pergaminhos e dos mares mortos como utópico salvador de quem, afinal, salvação carece de merecer – a humana espécie fabriqueira de tanto mal, esse erro descomunal do Pai dEle.
4 Bernardo Santareno, de óculos de massa grossa & escura, sobreviveu ao & do labor clínico-dispensário do Dr. António Martinho do Rosário (não breve). Povoou palcos multitudinários a partir da sua solidão escriba & atroz, própria dos Newtons-Cervantes-Camõezes-&-Jesuses. O precoce desaparecimento físico livrou-o, afinal & enfim, do desamparo: há lá maior companhia do que a oferecida pela multidão incontável dos mortos? Não há, nesta vida.
5 Ana de Castro Osório, a digníssima & proficientíssima senhora de quem Camilo Pessanha era, mas não foi, cativo – que grande pessoa, Ana. Chá & mesa-de-camilha. Biscoitos filológicos. Instrução literária & moral das crianças que nascem velhas. E vice-versa. Paladina de metade-do-mundo + outro-tanto: mulheres & homens. Sábia. Ledora. Escriba. E na linhagem ancestral do mais nítido, do mais formoso Poeta Português vivo: António Osório, Autor de Luz Fraterna e de Aldeia de Irmãos, além de, por azar e/ou por acaso, antigo Bastonário da Ordem dos Advogados. Ana, Camilo (o de Macau, não agora o de Castelo Branco), António – três bandeiras que o meu/nosso Portugal não sabe desfrad’hastear, coitado.
6 Eusébio da Silva Ferreira & Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro: dois miúdos que, nascidos embora em aparato de pobreza, vingaram (inatamente, primeiro; trabalhosamente, depois) na ludopédica arte da bola a enredar. Alpinistas-sísifos, mergulhadores-tântalos, são dois bravos de calções que espalham alegria como nenhuma feira-popular há-de alguma vez ser capaz de. Eles & a senhora minha Mãe. E o senhor vosso Pai. E o senhor meu Pai. E a senhora vossa Mãe.
7 Carlos Paredes. José Afonso. Carlos Seixas. Aristides de Sousa Mendes. O Infante D. Henrique. Carlos Lopes. João Roiz de Castelo Branco. Ouro. Ouro. Ouro. Ouro. Ouro. Ouro. Ouro.
8 Tido em rol o exposto onomástico de 1 a 7, que direi dos corruptos pró-droga da (ou na) PJ recentemente indiciados? E dos catatuas-chefes das Finanças trazidos à força de azeite policial ao lume da água jurídica? Que deles todos direi? Direi o mesmo que o peixe faz & o mesmo que eles são: nada. 

Canzoada Assaltante