Santo da casa
É
inelutável: com a idade, vamos todos volvendo-nos cacos arqueológicos que já só
sonham com cola. É da lei natural, tal ocaso cerâmico. Não me queixo delas: nem
da lei, nem da idade. No geral, sinto-me até sofrivelmente feliz da e com a
vida. Entre o 11 de Junho do ano que estiver em curso e o nono dia do mesmo mês
do ano seguinte, vivo em razoável paz com a minha arqueologia portátil. O meu
único desassossego é cada 10 de Junho. Cada ano, e por essa data exacta, temo (e
tremo) à força toda que o Cavaco se lembre de medalhar-me entre fachos de
espada à cinta e come(nda)dores de lautos bolos pagos pelo erário dos tolos. Ou
que, caco escaqueirado que cada vez mais sou, o senhor de Boliqueime me
etiquete a lapela com um daqueles camafeus (para lhes não chamar broches, não os da oral sucção erógena mas
os penduricalhos heráldicos) geriátrico-museológicos de que ele mesmo é já figurativo
paradigma de não despicienda evidência.
O
10 de Junho patrioteiro é o Natal dos pançudos que sentem um nojo invencível
pelos cristos esqueléticos. É a Páscoa dos imoladores de cordeiros em nome dos
deuses de si mesmos. É o Ramadão do jejum dos outros. É a Torah dos mosaicos
caça-níqueis. É o Carnaval dos Infiéis ainda não Defuntos. E é uma tragifarsa
que me sarapinta a alma de uma invencível pitiríase versicolor contra que não
encontro em lugar algum qualquer unguento de largo espectro de acção fungicida.
Pretendo,
todavia, perorar-vos agora a propósito de algo bem diferente. De algo, não - de
alguém.
Mais
de seis décadas a fio, foi, sem metáfora, cerâmico. Pintor cerâmico.
Invencíveis eram a finura do seu traço e a fineza do seu trato. A filete de
ouro, debruava em perfeito torno circular o rebordo pousa-lábios da chávena de
fina faiança. Esponjava a seco a puríssima e alvíssima nuvem branca no céu
azul(ejo). Agnóstico por lucidez, a chacota ou sobre vidrado gravurava painéis
em que pontificavam os santos simples e humildes tão ao gosto dos crentes
humildes e simples também: São Pedro com suas chaves, D. Fuas acossando o
veado, Santo António reparador de bilhas e de hímenes, a Rainha Santa
prestidigitadora de pão e rosas, o São José a fazer de padrasto manso, a
Sãozinha da Abrigada, o mansarrão Padre Cruz, o Irmão Doutor Souza Martins dos
milagres de cera e mármore cuja estátua ainda hoje pontifica no olissiponense
Campo de Santana, hoje dos Mártires da Pátria.
Nenhum
10 de Junho, muito menos Cavaco algum, o poderia macular, a esse
operário-artista, de falso preito o peito. Nunca.
Esse
pintor era o senhor Daniel. Meu Pai. A morte dele escaqueirou-me, é verdade.
Mas a memória dele é a minha cola de cada dia. Por quanto neste mundo é sítio,
é por senhor Daniel que hoje a mim me
tratam.
Por isso lhe escrevi isto:
O senhor é o meu Pai.
Nada me faltará.
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