A cera não é ruim, o defunto é que
sim
Um país
de pobres desgovernado por miseráveis – conheceis algum?
Eu, sim.
E não queria.
Conheço
um onde a vozearia é muito mais iracunda e a revolta muito mais veemente quando
um qualquer padre é trocado por outro padre qualquer do que quando o posto de
saúde, os correios, a escola, o tribunal e a própria junta são encerrados até
(nunca) mais ver. País-carapau, que só assim faz escabeche.
Uma
cidade capital de distrito (e de província)
inçada de lixo e de contentores de recolecção estripados à maneira de fins de
acampamento de rave – conheceis
alguma?
Eu, sim.
E não queria.
Conheço
uma que Garrett imortalizou, por exemplo. E não sei se o mesmo hoje faria, ele,
a tal morredouro de miasmas.
Tal país
e tal cidade parecem andar e trazerem-se a si mesmos num virote esquisito.
Varrer as respectivas testadas é coisa que nem esta nem aquele fazem. Nem à
chicotada. (Da psicológica, claro,
que da outra nunca a demos a sério, isto ainda não é a Arábia Saudita e as
sanzalas ultramarinas há muito as
extraviámos.)
Qualquer
antístite, mesmo o mais reles, é gajo para abichar sem esforço mor os cimélios
da parvónia – digo-o assim porque ando a ler o santareno Veríssimo Serrão tão
saudoso de seu Marcello exilado, rebate lhe(s) dando o coração contrito.
Eu nem
quero imaginar o que não faria uma Suíça, por exemplo, se lhe dessem nem que
fosse uma só légua de litoral do nosso. Um Tejo destes adentrando as primícias
do Atlântico por quanto é regadio, lezíria, sequeiro, céu até. E se esses acantonados
e multilingues helvéticos relojoeiros/queijeiros/banqueiros pudessem dispor
deste sol sem neve de quase todo o ano incidindo a pique sobre planuras tão
mais úberes quão mais desertadas? Não quero imaginar. O que damos à Suíça é
emigrantes de não-retorno e porrada no hóquei-em-patins (mais daqueles e menos
desta, aliás).
Venho há
uma vida gastando despicienda cera com o ruim defunto que, todavia, me é, no
(des)concerto das nações, o único que alguma vez me interessou, interessa e
interessar há-de – Portugal. Portugal e o Ribatejo dele, já agora. Continuarei
tal gasto, bem no sei, desgastado e desgostado, mas exalçado sempre por
(in)certa íntima obstinação a que só não chamo patriótica por poder ficar, hoje em dia, malvisto com o epíteto.
Não
frequento doutos grémios. Nem subidos sinédrios. Nem vou, sabido, à TV parecer
sabedor – gosto bem mais de iscas com elas e de ginjas idem.
Vou mais
pelo escalpelizar da pública coisa atoardando indignações miudinhas de cigarra
farta de ser formiga.
Terçando
armas pela Língua – é ver o estropiado idioma
com que a mais soez ignorância escreve, às costas e a pretexto do execrável AO 90, os rodapés dos telenoticiários e
demais imundícies afins.
Objurgando
o fedelho que fizeram, primeiro, cola-cartazes, depois assessor, depois
(tumba!) edil e/ou, até, ministro da Relespública.
Exprobrando
a demora inaceitável da adjudicação do Ministério da Saúde, no seu todo, à
confederação nacional de agências funerárias: pois não é ele o mais ingente
gato-pingado que por aí negreja o mais negregada, o mais mórbida e o mais
mofinamente? É. É pois: legionella, urgências, hepatite C em infindo e cursivo
etc.
Increpando
a emanação morbífica da mui bela, mui antiga e mui mal empregada Scalabis, cuja
multissecular vetustez merecia (e merece) outro futuro. Ou outro galo no
campanário. Ou outro povo cá em baixo. Ou, pelo menos, menos lixarada por tudo
quanto é canto, chiça.
O meu
único receio é ainda vir a ficar reduzido, uma destas quintas-feiras, a um
qualquer insensato atirador-não-furtivo de geriátricas verborreias, à imagem
daquele pantafaçudo peregrino do 44.
Pode ser
que não: ser pobre não é o mesmo que ser miserável.
Assim
sendo, que nunca me/nos falte a cera.