Visões com feijão
1. Feijão
Aqui há uns anos, fiz a viagem Pombal-Leiria. Atravessando
uma chuva tão diagonal que por pouco me não tirava a vontade de viver, seguia o
meu caminho. Por volta das Meirinhas, junto a um camião parado, um homem fez-me
sinal de paragem. A urgência era acentuada pelo recurso aos dois braços. “Como asas encharcadas”, senti. Parei na
berma. O homem veio. Pediu-me boleia para Leiria. Eu disse que sim.
Disse-lhe que pusesse o cinto de segurança. Ele puxou-o e
fingiu colocá-lo. Passou o resto da viagem a fingir que o tinha bem colocado.
Ia mexendo a cabeça para a frente e para trás. Fui-me pondo a pau. Perguntou-me
se eu era da cidade do Porto. Eu disse que não. Então donde. De Pombal, menti.
Entre a primeira e a segunda perguntas, fizemos quilómetros e silêncio.
Pediu-me que o deixasse ao pé do cinema. Quilómetros depois, que o deixasse ao
pé do quartel. Eu disse: “Cinema”. E
ele: “Está bem.”
À chegada a Leiria, ele disse: “No quartel, eles costumam dar feijão.” Aí, eu liguei a chuva ao
homem, a procura de alimento às poucas palavras. Finalmente, pediu-me “uma nota para um pão”. Dei-lhe moedas.
Eram 70 escudos. Ele disse: “Quatrocentos
dão para um ano”. Não sei se se referia a escudos ou a pães. Saiu.
A vida é um pouco maior do que a viagem entre Pombal e
Leiria. Mas se, como às vezes parece, ela me falhar, pelo menos já sei onde
arranjar feijão.
2. Visões
Segunda-feira de manhã, dei uma volta pelo mercado da
cidade. Não fui às compras. Fui ver o que tinha o mundo para me dar aos olhos.
Vi um par de gémeas que, apertadas sob o guarda-chuva,
davam corpo à ilusão de a vida se repetir. Vi uma mulher a cair de bêbeda sobre
o passado dela. Vi um polícia bocejar contra o regulamento. Vi a chuva
procurando-nos, e encontrando-nos, a todos. Vi um vendedor de lotaria sem
sorte. Vi uma mulher de olhos claros a falar pelo telefone público numa língua
obscura e particular. Vi um funeral com mulheres grávidas no préstito. Vi um
poema sobre a companhia que Cristo faz a cada um, como se Cristo fosse a chuva.
Vi pouco do mercado propriamente dito.
Resumo: segunda-feira de manhã, dei uma volta pelo mercado
e vi o que vi. Muitas outras pessoas fizeram o mesmo: deram uma volta pelo
mercado e viram o que viram. Cada pessoa fabrica, pois, a sua visão. E, dela, a
sua verdade. Não há, portanto, uma verdade, mas tantas quantas as cabeças. Isto
sossega-me. Vi as gémeas, a mulher, o polícia, a chuva, o cauteleiro, a
estrangeira, as grávidas. Outros terão visto o que para mim se tornou
invisível.
As vidas parecem plurais. A visão é, de certeza, singular.
O que cada um descobrir sozinho, conte aos outros. Pode ser que uma solitária
manhã de chuva se torne um mercado cuja principal mercadoria seja a
solidariedade. Não sei se resulta. Vou tentando.