28/03/2013

Rosário Breve n.º 302 - in O RIBATEJO de 28 de Março de 2013




Visões com feijão

1. Feijão

Aqui há uns anos, fiz a viagem Pombal-Leiria. Atravessando uma chuva tão diagonal que por pouco me não tirava a vontade de viver, seguia o meu caminho. Por volta das Meirinhas, junto a um camião parado, um homem fez-me sinal de paragem. A urgência era acentuada pelo recurso aos dois braços. “Como asas encharcadas”, senti. Parei na berma. O homem veio. Pediu-me boleia para Leiria. Eu disse que sim.
Disse-lhe que pusesse o cinto de segurança. Ele puxou-o e fingiu colocá-lo. Passou o resto da viagem a fingir que o tinha bem colocado. Ia mexendo a cabeça para a frente e para trás. Fui-me pondo a pau. Perguntou-me se eu era da cidade do Porto. Eu disse que não. Então donde. De Pombal, menti. Entre a primeira e a segunda perguntas, fizemos quilómetros e silêncio. Pediu-me que o deixasse ao pé do cinema. Quilómetros depois, que o deixasse ao pé do quartel. Eu disse: “Cinema”. E ele: “Está bem.”
À chegada a Leiria, ele disse: “No quartel, eles costumam dar feijão.” Aí, eu liguei a chuva ao homem, a procura de alimento às poucas palavras. Finalmente, pediu-me “uma nota para um pão”. Dei-lhe moedas. Eram 70 escudos. Ele disse: “Quatrocentos dão para um ano”. Não sei se se referia a escudos ou a pães. Saiu.
A vida é um pouco maior do que a viagem entre Pombal e Leiria. Mas se, como às vezes parece, ela me falhar, pelo menos já sei onde arranjar feijão.

2. Visões

Segunda-feira de manhã, dei uma volta pelo mercado da cidade. Não fui às compras. Fui ver o que tinha o mundo para me dar aos olhos.
Vi um par de gémeas que, apertadas sob o guarda-chuva, davam corpo à ilusão de a vida se repetir. Vi uma mulher a cair de bêbeda sobre o passado dela. Vi um polícia bocejar contra o regulamento. Vi a chuva procurando-nos, e encontrando-nos, a todos. Vi um vendedor de lotaria sem sorte. Vi uma mulher de olhos claros a falar pelo telefone público numa língua obscura e particular. Vi um funeral com mulheres grávidas no préstito. Vi um poema sobre a companhia que Cristo faz a cada um, como se Cristo fosse a chuva. Vi pouco do mercado propriamente dito.
Resumo: segunda-feira de manhã, dei uma volta pelo mercado e vi o que vi. Muitas outras pessoas fizeram o mesmo: deram uma volta pelo mercado e viram o que viram. Cada pessoa fabrica, pois, a sua visão. E, dela, a sua verdade. Não há, portanto, uma verdade, mas tantas quantas as cabeças. Isto sossega-me. Vi as gémeas, a mulher, o polícia, a chuva, o cauteleiro, a estrangeira, as grávidas. Outros terão visto o que para mim se tornou invisível.
As vidas parecem plurais. A visão é, de certeza, singular. O que cada um descobrir sozinho, conte aos outros. Pode ser que uma solitária manhã de chuva se torne um mercado cuja principal mercadoria seja a solidariedade. Não sei se resulta. Vou tentando.

21/03/2013

Rosário Breve n.º 301 - in O RIBATEJO de 21 de Março de 2013 - www.oribatejo.pt





Viva a Graciete

Tive um sonho em que apareciam como protagonistas Passos Coelho e Lee Harvey Oswald. Já não me lembro do enredo, só que acordei feliz.
Levantei-me, pois, fresco e retemperado. Na cozinha, liguei o rádio e aqueci café. A antena debitava pela enésima vez as últimas (ou as primeiras) de Francisco I, o novo sumo pontífice. “Com papas e bolos se engana os tolos”, surdinei eu, ferrando um bolo entre goles de chávena. Lavei-me à gato com água do bidé. Ambas as torneiras do lavatório estão perras, mas é que, como vos disse na semana passada, já não há canalizadores em Portugal. Tenho em Espanha um primo que percebe disso, mas o Gaspar já disse que até pelo menos 2015 ele não volta. Quer dizer que até 2021 o não vejo. Ao meu primo.
Penteei-me com um resto de brilhantina de um boião que me deram no Natal de 2008, época em que (é curioso, enquanto escrevo, que tal me ocorra) eu já tinha sonhos tipo Sócrates & Buíça. Olhei-me ao espelho: parecia a Gioconda penteada a leite. Fiquei satisfeito, até porque não sou dos desempregados mais carrancudos da viela.
Voltei à cozinha, meti quatro bolachas-maria no bolso esquerdo da jaqueta e na direita uma garrafa que foi de iogurte líquido meia de aguardente vínica que a tonta da minha senhora se esqueceu ontem de esconder depois de assar o chouriço de colorau que a mãe dela nos deu por pena. Fiz-me então ao rio da rua. Chovia, última coisa que Deus ainda dá.
O café da Graciete tem desde sábado a bica a cinquenta cêntimos outra vez. Baixou dez para chamar de volta os fregueses. Graciete e Gaspar, em inteligência, só têm de comum a primeira letra do nome. Como meio euro é o que as pessoas que ainda têm carro dão para estacionar, ninguém explicou ainda porquê, a Graciete voltou a ter de manhã, certinhos, cinco de nós, arrumadores.
Tomei a bica devagar para parecer muita. De frio, o último sorvo sabe a gato molhado, mas paciência: ao menos habemus papam, que é como se diz tolo em latim.
Fui então, por assim dizer, trabalhar. Foi uma manhã mais ou menos: fiz quatro euros e trinta e dois tostões – tive uma senhora que se me desfez em desculpas mas que só tinha pretas, como agora acontece nos investimentos pós-coloniais em Portugal. Por ser bom gajo, disse-lhe que ela para a próxima me dava dois euros e ficámos assim muito amigos tipo troika.
Comi as bolachas, poupei para um aperto da tristeza quanta vínica pude e voltei à Graciete, devia ser quê, uma e meia já. Bebi dois bagaços com o Zé Pisco que faz o estacionamento do mercado da fruta, o sortudo, o leiteiro. Como o Record estava ocupado pelo gajo da farmácia, bocejei as cáries e deixei-me estar a pensar em nada, que é o desporto preferido do nosso povo a seguir ao futebol. Alguém porreirinho-pá deve ter pago mais alguns cálices valentaços, também já não me lembro, isto de beber é como nos sonhos, vale que um gajo se esquece até do mal, quanto mais do bem, o certo é que já não fui, por assim dizer, trabalhar todo o resto da parte da tarde.
Dei por mim era já noite (e eu matéria dela, noite), por modos que arrepimpado no rebordo do chafariz e de cós virado para as gárgulas premonitórias de uma improvável pedra-de-Ançã talhada num século diferente e talvez melhor do que este. Nem triste nem eufórico, eu. Algo desalentado, apenas, desse desalento de cortiça que faz ranger a pituitária aos bebedores sem alegria nem lembrança.
Desalentado, digo, porque eu nem toda a vida quis ser arrumador. A falar verdade, o que eu queria mesmo era ser o Oswald. Ou o Buíça, que sempre era português.
E professor, como eu também já fui.

20/03/2013

OS ÚLTIMOS ANOS DE TODA A GENTE - 239


239

Leiria, 20/III/2013,quarta-feira

Uma volúpia mansa frúi por mim a manhã clara.
Comboio de nuvens vem chegando de noroeste.
Alta, uma vivenda aproveita o sol na cara.
Um dia é o tempo todo – e tem o dia de ser este.

Fiz-me ontem talvez mal: vi fotografias antigas.
Senti-me só por dentro no arrebol da cidade.
Não é que me queime o coração, isto da idade.
Queima-o sim isto dos sonetos e das cantigas.

Mas ao fresco de Março a manhã é fruição,
é gozo barato, mansa posse, paz-d’alminha.
Não me pertence esta terra, mas faço-a minha

à fita e à força dos dias colados a cuspo.
Débil seria não ourejar à luz, a luz po-
derosa que a tudo aclara e faz fruir, mansinha.  

14/03/2013

Rosário Breve n.º 300 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Tresloucada doença prolongada

Os jornais de antigamente chamavam “tresloucado acto” ao suicídio. Quando no activo da profissão, nunca fui muito amigo de noticiar suicídios. Talvez a minha repugnância pelo tema derivasse do respeito (e do temor) por essa máxima privacidade que é a terminação auto-infligida.
Segunda-feira passada, os jornais parangonavam mais uma tragédia portuguesa desse teor. Um canalizador desempregado de 43 anos atirou-se para um poço aberto. A diferença está em que arrastou com ele o filho, menino de tão-só dois anos de idade. Foi numa aldeia de Viana do Castelo.
Parece moda moderna, esta de precipitar os próprios filhos no reverso do futuro. Acto e facto pungem e consternam em acerbidade aspérrima a todo quem não estiver embrutecido de vez. E fazem pensar toda a pessoa a quem não apenas o pente concorra à cabeça.
Não me resulta difícil, franca e infelizmente, ver naquele poço sem cobertura o pélago da selvajaria hipercapitalista do nosso tempo. A voracidade do Deus-Dinheiro revela-se cada vez mais mortífera. A vida pessoal, esse tesouro portátil que só se gasta uma vez, deixou de pesar na balança de um prato só dos mandadores. Daí que eu considere, o mais sinceramente, o mais acusadoramente, que quem matou aquele pai e aquele filho tenha sido o Governo da Nação.
É peregrina, esta minha ideia?
É tola, esta minha raiva?
É desajustada, tal minha arrelia?
Seja. Seja. Seja.
Mas.
Mas algo tem de ser feito para que o desassossego contagie, também, os criminosos da Alta-Finança. Para que a intranquilidade se aposse, também, dos corruptores da Banca. Para que o medo erice, também, o espinhaço dos bastardos adoradores do ouro.
Aquela aldeia de Viana do Castelo é Portugal todo: sinédoque tão triste quão real. O café em que fiavam a bica àquele canalizador sem esperança é o café a que todos vamos. E aquele poço a céu-aberto é deveras o que vos disse que é.
Os jornais de antigamente chamavam “doença prolongada” ao cancro. Eu não. Eu chamo “doença prolongada” à matilha governamental. E doença tão prolongada, que me não parece seja curável enquanto o solo pátrio não estiver juncado de pequeninos cadáveres de crianças que cometeram, sem no saber, o “tresloucado acto” de nascer em Viana do Castelo, isto é, em Portugal.

05/03/2013

OS ÚLTIMOS ANOS DE TODA A GENTE - 34 (escrito hoje, 5 de Março de 2013)



Queria já tão-só, uma destas consoadas, não ser o
inconsolável ante as cadeiras vazias, três até agora:
a do Pai, a da Mãe, a do Espírito Santo.

03/03/2013

Lorde Gin (IV) - 21 de Janeiro de 2013 - in PRIMEIRA RAÇA






Era pelo vento de papel-de-seda, era no Cabeço do Picôto.
Ser menino acontecia bandeir’airosamente ao alto.
A terra tinha, parecia, instâncias do mesmo mar
que além-Bolão quase fingia ser já e ali estar.
Airosa mente, ainda não fumada ou bebida então, a minha
me subia à mundial cercania do ouro mais duradouro.
Significa: era feliz como um pássaro sem guita ou linha
e não conhecia deveras gente que deveras fosse aflita ou sozinha.
Era (n)o começo de tudo: porque o mundo só se inicia
quando uma pessoa se faz dia. Não havia reverso,
verso sim só havia (e pode ser este dele o recado).
A vida era toda de frente, rosto toda: e o rosto era lavado.

O comércio era então de coisas não encaixadas.
O que era produto, mostrava-se nu ao desejo.
A Senhora Eduarda e o Senhor Carlos (hoje dizem-se jeovás)
enchiam de carvão (tal como na Casa Pantaleão) quem lhes levasse o cabaz.
Das fábricas, ao meio-dia, os obreiros saíam ao comer.
Pontuais como as marés, era vê-los sempre reter
o passo certo, a força da hora, o Tempo feito andante cavaleiro.
Nada que não pudesse ser aparecia de ante: tudo era fronteiro.
Que é feito? Que e quem se desfez já?
Nesse tempo o não sei, perguntas dessas não há
nem as faz quem de siso, que estar triste não é preciso.
(Mas pensá-lo e perguntá-lo agora é duro aviso.)

– Voltarei entretanto a este assunto,
que o tempo agora não é muito. –

Canzoada Assaltante