De volta
1. Há anos que o meu
nascimento deixou de ser a notícia mais importante da vida que me coube.
Envelhecer é devir subtitular, adjudicando aos Elementos o protagonismo
capitular de que eles não abdicam – o vento nos canaviais, o rio construtor do
mar pela terra, o céu ao alcance da mão que precisamente nos falta, a majestade
do arvoredo fixador de dunas.
Uma das evidências mais bastamente contribuintes para esta minha afinal
serenidade aconteceu-me há uns poucos anos, talvez vinte e uns trocos.
Nascera-me havia pouco a minha Primeira. Fui visitado pelo seguinte axioma: “A minha morte já começou – lá onde estive e
aonde não voltarei.” Como um ósculo do Demo, o sal dessa verdade fulminante
mordeu-me o ápice da língua. E da Língua também.
Conservei tal sal, que é da terra como são do campo os lírios. E assim
foi que cheguei a este Café. É noite já, a terça-feira instalou na província a
sua barraca fugidia como os panoramas de janela de comboio.
2. De ampla, larga, longa
camisa roxa (roxa, longa, larga & ampla como a túnica do Senhor dos
Passos), um cavalheiro de cerca de meio-século-+-IVA tasquinha tremoços ao
escanteiro do balcão-inox. É de pança rotunda como uma jibóia de geleia.
Apresenta aquele ar de córnea abulia próprio de quem votou no coiso que se
segue. Usa cachucho-pechisbeque a sul da unhaca mínima esquerda.
Estrangulando-lhe o cachaço rubicundo, uma medalhinha fosforesce de catolicismo
folclórico para inglês (protestante) ver. Os sapatos lamentáveis desmentem dele
a abastança feirante: de napa mordida a ourelo falso, conhecem mais lama
pecuária do que passadeiras vermelhas. E o porta-chaves cifrado a gritante BMW só dá ignição a um Opel Corsa de
1987 de estribos mais derreados do que asas de anjo desempregado. Nisto tudo,
todavia, sei que é bom homem – que é muito bom homem, aliás. Veio da França,
onde estava tão bem, ao mote de acudir a um irmão manhoso que, havendo sido
bufo da PIDE-DGS, não chegou aos dez-de-junho do coiso que está de saída. O irmão
sofria de remela capciosa, que é a cegueira em forma de resina-de-figo. Chegado
de França, este senhor-dos-passos pagou tudo por ele: o desquite, o abate do
cão, a lepra das dívidas da lerpa, a remoção do chocolate intestinal a que as
cuecas dão sudário terminal. O tal irmão depois morreu-lhe – mas este não
voltou à Gália. Deixou-se ficar para ser personagem de crónica.
3. Perto dele, mas também
sozinha como uma lembrança viúva, mora uma faneca bípede que se calhar votou
Belém sem Maria. Empunha um frasquito de anis cintado a filete azul e fuma
palitos níveos que tresandam a mentol de casa-de-alterne. De repente, boceja: e
é então que me é dada a epifania de suas estalactites aguçadas por aquele
azul-cárie que resulta da amargura do açúcar-amarelo soluto em bagaço matinal.
Ao fundo do cavername bucal, a úvula estremece-lhe como um pendurichocalho
sineiro de capela pobre – e a boca do estômago fervilha de ácidos furiosos
próprios só de quem não comeu hoje um freguês sequer. Obliqua-lhe o tiracolo
uma faixa azul-celeste à maneira cerimonial da Sãozinha-de-Alenquer. A saia é
travada a fundo como os Austin-Morris de fins de bebedeira. E o olhar é-lhe
glauco como a borboleta ao quinto dia de nascida. Vale que não incomoda seja
quem for. Está ali como um vaso. E aqui fica (d)escrita para V.ª ilustração.
4. Verdade: deixei de nascer
desde que a minha Segunda, há década & meia mais uns pós, logrou romper da
estapafúrdia corrida de girinos cabeçudos rumo ao sol-óvulo do seu destino.
Entretenho-me por estas cercanias de nenhures numa espécie de êxtase grato à
galeria infinita do mundo local. Às terças, recolho-me a um nicho cafeíno do
pequeno-comércio e escrev(iv)o o que vejo e o que nem preciso de olhar. E dois
dias depois a realidade torna-se jornal, o que nunca deixa de me parecer
milagre: por ser, ao contrário do meu nascimento, sítio onde estive e aonde
sempre voltarei.