12 de Março de 2015
Portugal über alles
O (grande) actor Jeremy Irons afirmou
recentemente numa entrevista que, após ter promovido e perdido duas guerras
mundiais no século XX, a Alemanha voltou à carga – mas desta vez para vencer. É
uma guerra sem trincheiras, sem tanques, sem aviões e sem capacetes à vista.
Mas é uma guerra – a económico-financeira. Pode não ter sido por estas
palavras, mas foi neste sentido. Infelizmente, só posso concordar com ele.
É por isso que o que se passa com a
Grécia me faz bem. Duvido que tudo aquilo dê grande coisa. Mas se der alguma,
nem que seja pequena, já não é nada mau. A autoridade do Estado e o poder dos
cidadãos raras vezes são coincidentes. Aquela sobrepuja este quase sempre. Até
que. O caso helénico pode ajudar os espoliados (os da Europa pelo menos) a
bater o pé, e com estrondo, no chão continental.
Circunstâncias minhas têm-me levado a
ser mais sensível (e mais vulnerável) às misérias que por aí grassam. Quando
digo “por aí”, digo Portugal. É o
sítio que me importa. Para mim, e por assim dizer, Portugal über alles.
Hordas de desvalidos inçam as artérias.
A maioria é de pedintes que não pedem, mas um gajo topa logo que ali anda e vai
a desesperança irremediável. Já não se trata da cómoda, livresca e afrancesada “angústia existencial” das filosofias de
badana. Não. É angústia a sério. É estreiteza de tudo: de garganta, de bolso,
de futuro. (E angústia e estreiteza são de íntima conexão
etimológica – não há coincidências nestas coisas).
Pois é, tenho andado mais permeável à arrepiada
e arrepiante dramaturgia social. Talvez por uma questão de espelho. Há dias
poucos, sentei-me num muro que beira uma encruzilhada urbana. Ena, tantos eus!
Houve aqui alguém que se enganou. E que foi enganado. As duas coisas
complementam-se. E no fim ganham os Alemães, como na bola.
Deveríamos, acho eu, ver-nos gregos.
Primeiro, correr com esta seita seguidista, acéfala e invertebrada que não
conhece nem reconhece pessoas, só números. (Curioso: no preciso momento em que
escrevo, o ministro da Saúde debita minudências vãs numa comissão parlamentar
da especialidade. Mas há tempos, ali para o Baixo Vouga, uma velhota de 92 anos
esteve três dias esticada numa maca, consciente sempre, à espera de uma
urgência utópica.)
A nossa bancarrota começa por ser moral.
Depois, é de batatas em casa. O trabalho é encarado pelos empregadores como um
luxo odioso. Se não o trabalho, então o salário. Olhai o ataque que por aí vai
à contratação colectiva. A banca é o que todos sabemos: um antro infecto de
ladrões, pandora de ali-babás. E as ruas enegrecem como se fechadas ao céu.
A vida anda a doer-nos de mais. A mim,
anda. Coisas minhas, é certo, algumas das quais, todavia, se irmanam às dos
meus compatriotas. Dos meus compatriotas, chamemos-lhes assim, portugregos.
Que uma vez mais e ainda, no fim, percam
os Alemães. E que aquela parte do Vouga só seja baixa de nome.
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26 de Fevereiro de 2015
A
vida é só hoje
O meu País já ontem era tarde. E amanhã
não será cedo.
Outras formas haveria de dizer isto –
mas não as quero. Quero dizê-las assim. E digo.
Nestes mais recentes dias, desavim-me
comigo mesmo um pouco mais do que de costume. Pus-me por aí dias a fio sem meta
nem retorno, a pé e com a mesma roupa. Calcorreei vastidões que só com muita
generosidade podereis imaginar. Um trecho do desconsolado périplo foi rente à
minha terra original. De novo me tomaram os olhos as mastodônticas estruturas
industriais em ruínas. Abandonadas pela cobiça e pelo anti-humanismo de
meia-dúzia de yuppies criminosos, são
hoje carcaças grotescas que espelham sem ilusões o avesso do progresso. Sei de
cor as famílias completas que nelas labutaram para comer. Hoje, sei de cor os
desempregados sem idade para sonhar com mais nada, os reformados da uva-mijona,
os novos que por aqui não ficam.
A TV, todavia, continua a ladrar
mentiras felizes. Há carnavais por todo o lado e por todo o ano. A populaça
gosta que lhe façam o serviço pelas costas, na condição de um bocadito de
vaselina primeiro. A anemia dos sistemas de ensino, de saúde e de justiça
terceiromundiza-nos a todos, mas nem todos ligamos muito à evidência. As
autarquias promovem festarolas de sopas e de espinhaços de bacalhau com aquela
presunção de fartura geral que é rasca e que é estúpida e que é mentirosa e que
não vale uma buzinadela tripeira das mais sonoras. Aparecem senhoras lambuzadas
de banhas lustrais a dizer coisas vãs e flatulentas como ouviram dizer nos
programas pimbas da manhã e da tarde e da noite e amanhã o mesmo. Aparecem
autarcazitas burros como testos a apregoar moralidades de papelão que eles são
os primeiros a não seguir. Professorazitas que não lêem. Jornalistazitos que
nem informam nem se informam. Condutores sem o mínimo lampejo de civismo
ensanguentando as estradas na maior impunidade e na maior inconsequência.
Casamentos e mancebias que, desfeitos, resultam como se por lógica simples em
mortandades de faca e caçadeira. Os raios do Diabo, enfim, numa terriola de
procissões raquíticas e de santos do caruncho.
Sinto que a crónica me está a sair
azeda. Falemos de andorinhas. Ontem vi algumas. Apesar de tudo, apesar do País,
das bestas da economia, dos avatares de tanta merdice, o céu deu-me andorinhas.
Não eram muitas, mas para mim chegaram como mais do que suficientes. Contra o
firmamento, que então era da cor da folha-de-flandres, traçavam elipses
molhadas de tinta-da-china. Rápidas, diligentes, bailarinas, como se ébrias.
Foram a minha recompensa e foram a minha alegria por alguns minutos. Sabia que
acabaria por escrevê-las, como sei que um dia tudo se nos acaba, a começar pela
tristeza e pelo se calhar mau hábito de andar por aí a estrangeirar o coração.
Mas ontem, por instantes, não.
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5 de Março de 2015
Périplo
e reencontro
Num dos mais recentes périplos a que
venho procedendo pelos inumeráveis nenhures da minha vida, passei por um desses
bairros ironicamente designados de “sociais”. Sítio em planalto que o vento
fustiga sem peias. O lixo voa mais do que os pássaros que por ali não há.
Furgonetas enferrujam contrabandos mesquinhos. Crianças enrugadas como trapos
precoces. Gordos cheios de fome. Um cheiro a degradação orgânica em cada caco.
Até as pedras cheiram mal. A carcaça de um burro morto num baldio. Só a erva
parecia, e era, viçosa. Passei depressa. O meu fito era a paragem do autocarro
que acabei por não esperar. Além do viaduto, desce-se para um bairro de casas
pagas pelos seus habitantes. Há pastelaria, churrasqueira, loja de peças-auto,
correios, coisas normais. Ansiei por elas. Fui a pé.
Acabei por chegar. A morrinha
aconteceu-me por essas cinco da tarde. Já a luz insinuava escuridões súbitas,
bafos de noite, arrepios de nuca. Ali sim, havia aves. Uma delas acrescentava
céu a um prédio. Fumei meio cigarro molhado, sem saber se pela direita se pela
sinistra. Subi qualquer coisa, há um Café antigo ao cimo da escada que leva ao
patamar. Felizmente pouca gente, felizmente o televisor desligado. Café e
aguardente para torrar o nascimento. Um jornal partido pela espinha como algum
amor antigo. Cascas de tremoços juncando a serradura do chão. Copos esbeiçados.
Raspadinhas que não deram. A mulher ao balcão: refegos de geleia apertada em
lã-de-vidro. Aquelas unhas roxas de coçar vinho. Eu ter telefone, tinha – mas
não tocava. Desandei. Passei ao pé da casa daquele que era polícia, não sei que
será desfeito dele, os anos passam, são desinsufláveis, os sacanas dos anos.
Uns oitocentos metros para oriente,
encontrei a minha crónica da semana passada: também ela partida pela espinha,
também ela voando por entre cacos, trapos e farrapos.
Também ela lixo, como quase tudo.