13/12/2020

VinteVinte - conclusão do 152 (V)

© DA. 26 de Agosto de 2020





152.

 

ÚLTIMA O. DE CÉU

 

Coimbra, terça-feira, 29 de Setembro de 2020 

 

        




Recordo com força de lei uma noite ferroviária, 
era de cortante friagem a invernia residente, 
pouquíssimos éramos os passageiros em curso, 
para trás nos ficava o mar, pela frente o berço, 
nós coimbrãos íamos à Figueira como visitando a filha, 
essa era uma era já demoradamente lutuosa para mim, 
ainda assim socorria-me a mocidade mesma minha, 
Coimbra era já bem presa do anoitecimento local. 
os taxistas quase choraram de frustração, 
descemos os quatro, três eram esperados, eu fui a pé. 

A avenida mais cerca era pista de fantasmas, 
um pouco aquém da massa lírica do velho Choupal, 
não era ainda sobrepovoada pela via-rápida futura, 
o Café Danúbio trabalhava as 24 horas de cada dia, 
tinha chovido um pouco antes de chegarmos, 
recomeçou a chover quando eu pedestrara tão-só uns metros, 
como a pressa era nenhuma recolhi-me ao bom Danúbio, 
em cujo imo se forravam quentura as aves-da-noite, 
entre as que duas senhoras-de-aluguer de dura vida, 
ali me valeu o ponche limonado bem aquecido a vapor. 

Então o céu exterior chateou-se a sério, veio tormenta agreste, 
a condensação glaucomou as vidraças, existir-se tornou-se submarino, 
começou a servir-se bifanas feitas na hora, a rádio dava Amália non-stop, 
existir era hora aprazível, eu não escrevivia tanto na altura, 
de facto não – mas já lia o meu bocado, recordo essa noite bem, 
pus-me a ler a miudinha tradução do Bosque Proibido de Mircea Eliade, 
foi destas coisas que ficam na pessoa por não-apurada razão, 
o certo é que já perto das duas da manhã o temporal cedeu, 
houve geral debandada, ficaram dois + o patrão + eu, quatro certinhos, 
naturalmente pusemo-nos a bater a sueca à rodada por cabeça-de-dez. 

Já era amanhã quando me devolvi ao ar-livre do sábado, 
era moço, não de mais me pesava não ter dormido, 
subi até à Conchada pela Rua de Aveiro, depois até Celas, 
depois Olivais, aí tomei café lendo o pasquim fresco do burgo, 
nada me urgia, já então se me mostrara nítido certo vazio, 
refiro-me à vanidade tanto das mores quanto das menores porfias, 
o luto não era antigo, corria antes fresco no meu sangue, 
Coimbra todavia ainda me tratava por tu, velha magana, 
e eu andava cá & lá como quem até em praia tropeça, 
modo de dizer afinal não descabido de todo, dito hoje. 

Cedo foi pois que me pus a achar pequeno o que parecesse grand’espingarda, 
assim foi, escuso de jurá-lo, não é que de viver haja abjur’abdicado, 
não, não é por aí que mais bem me lereis, por aí não é, 
empregos-carreiras-prémios-estatuto-caganeiras são nada para mim, 
é aborrecido que todos estes volvidos anos tão firmemente mo reiterem, 
aborrecido mas cruamente confirmado, poucas são deveras valiosas as coisas, 
dos Olivais desci à Solum, um passo até o Calhabé, onde almocei, 
julgo que já casa nenhuma me esperava, já então não, 
isso não é o bem nem é o mal, o Mircea Eliade romancista, enfim, 
não é bem o filósofo-antropólogo de subida & reconhecida nomeada. 

Algo porém vale algo ainda. 
Por esse algo tenho ido. 
Não importa que importe ao mundo ou não. 
Nasce-se, acontece o que se sabe. 
Nos entrementes, algo por aí brilha. 
Éramos mesmo só quatro os de fora-comboio. 
Quatro éramos os jogadores de sueca. 
Vai-se estando um pouco: com estes, com aqueles. 
Depois, ninguém te vê por/para onde fores.
Ganhámos a rodada, a cabeça ficou 10-9 a nosso favor.


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Canzoada Assaltante