31/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 419 a 422

© DA.


419

Domingo,
30 de Maio de 2021

    Vejo imagens & ouço palavras a propósito de um Eric Hobsbawm, homem dado por nascido no ano da Revolução Soviética & do meu Pai – 1917. Historiador, nada li dele ainda, talvez aconteça um dia ler alguma coisa de sua pena. Viveu anos cruciais em locais cruciais. Viena, Berlin, 30s/XX. Na Primavera de 1933, Londres. Perdeu pai & mãe muito cedo, criança ainda. Conheceu cedo, também, os livros. Foi politizando-se lendo & vendo. Ler & ver deram-lhe ser. Foi um cambridgeano assaz distinto. Formou-se em 1939, ano-primo da II Guerra Mundial. O documentário da sua vida é atractivo, enriquece a minha tarde dominical.
    Um panorama de áleas verd’escuras guardando do sol forte
    Longe do estrépito de plásticos & gritos de pessoas plastificadas
    Aqui onde a mina-d’água permanece viva entre jóias segredadas
    Aqui quando ainda não há nada sério que se corte.
    Ou então, a pessoa sentindo ser-se. Ou seja: ser-adentro-si-sempre mas (forte itálico) em conexão com os elementos que dão em conjunto o espectáculo-do-mundo. Ou se se preferir: o aparato-do-real. Desta marquise em lôgo cimeiro, miro, como em proscénio, a mescla do natural com a intervenção humana. Comparo o que é com o como-já-foi. Disponho de décadas usadas para tal cotejo. Valorizo o indivíduo, sabendo todavia que a realidade o ignora. Ainda assim, entre esta & aquele há forçosamente conexão, se não coerência.

420

    É provável atingir alguma sabedoria – mas não é, de todo não é, improvável que ela chegue algo tarde de mais.

421

Barco no horizonte rumando a norte
Ponto vivo em acção voluntariosa
Define-se a si mesmo definindo o rumo mesmo
Apraz vê-lo enquanto o aqui por aqui se fica.

De aqui a linha de habitações térreas
Em um dos quartos alguém folheia a janela
Folheia esse livro de luz aberto à praia
Intemporal tal alguém na quietação instante.

Que fizeste, ó boa pessoa, este domingo?
Que fizeste tu deste dia?
Que fez ele de ti?
Que foi ele contigo?

Ordem, desordem, ordenação, insubordinação
Revolução, capital, império, liberação
Entropia, caos, tormenta & bonança
Uma vida é quanto dura o lápis.

Não poucas vezes algo se detém por valia
Algum gesto sem propaganda vil
Algum exemplo bem dado, não vendido
Certa partilha em boa frase de bom siso.

Saulo-perseguidor volve-se Paulo-perseguido
Algo em nós é Scott, algo em nós é Amundsen
Idem Carochinha & João Ratão
Cai o Gigante do pé-de-feijão.

422

A terra está nublada desde o primeiro hálito nocturno.
Só as casas mais altas erguem suas cristas telhadas.
A massa arbórea assimila a humidade ubíqua.
Não há por aqui humanidade visível, só o que digo.
Muito do que digo, agora, é sem humanos.

30/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 417 & 418

© DA.


417

Sábado,

29 de Maio de 2021

    Floresce afinal o Sábado em demora leve.
    Na cozinha, apura-se paulatino o caldo.
    Fi-lo de galinha com arroz, mostra bonita ôlha.
    Coentros já perfumam pungentemente a obra.
    Enquanto esta gaia aventura trepida de emoção, miro panoramas da Austrália. Aquilo é deveras outra dimensão. Os aspectos da Natura são deslumbrantes. Quanto à humanidade íncola, digo nada porque pouco sei, pouco sei desse saber fundamentado que evita a precipitação de juízo. É a terra do Nick Cave & da Nicole Kidman – e de mais uns quantos milhões sem nome de monta. Do cu-de-judas austral, sigo, por assim dizer, rumo a territórios & povoamentos que a memória ainda não obliterou. Aqui há trinta anos, zona de terra vermelha a oriente, mais negra a ocidente. Riqueza agrícola evidente: milho, tabaco, batata, gado pastoril & vacum-leiteiro. Pessoas desses casais: obstinadas em seu labor, na cave do coreto jogavam as cartas (sem ser a dinheiro) aos domingos pela tarde. Tinham Junho por mês da festa anual, cujo orago simpático era – e continua sendo – Santo António. Nestes anos mais recentes, não tenho revisitado a região. Fui lá em Agosto de 2019 – mas para o funeral de um Amigo. Na minha idade, são mais os funerais do que casamentos & baptizados. Não há volta a dar-lhe, a lei é a Lei.
    Meti adentro a canja especiosa. Já escancaro bocejos saciados. Leio o que aconteceu ao casal Ananias/Safira – e que não foi bom, morreram, um de cada vez, por terem tentado ficar com algo para si em vez de tudo darem à comunidade dos primeiros cristãos (cf. Actos dos Apóstolos: 5, 1-11). Tinham vendido um terreno que lhes pertencia. Deram parte do produto da venda, depondo-o aos pés dos Apóstolos. O Espírito Santo não gostou da marosca: morra Ananias, morra Safira. Ainda bem que não tenho terra vendável, só a que os meus pés pisam em andamento. (Mas: “Deus não lhe deu nenhuma propriedade, nem mesmo o espaço para ele pôr o pé.” Isto é Estêvão afrontando as altas autoridades, cf. Actos: 7, 5.)
    Sim, sou leitor há anos da Bíblia Sagrada. Há mais coisas nela do que a minha vã filosofia concebe. É uma ferramenta de poder: é coisa perigosa, portanto, se mal usada. (Em vez de se, será mais curial dizer sempre que – pois em verdade Vos repito que assim tem sido bastas vezes pelos-séculos-dos-séculos.) Não procedo todavia a mais extensa disquisição. Aproveito ludicamente a densidade de capítulos & versículos de um livro velho – e, não-raro, envelhecido como sangue seco.
    Já o Sábado desceu sua seiva mesma toda.
    Talvez um chá melado gasalhe a sonolência.
    Havendo alguns recursos, as horas não ferem.
    Até um dia há-de ser manhã.

418

É decerto ingenuidade esperar que pelo falar nos entendamos.
Talvez alguma vez tenha acontecido – mas entre outras pessoas.
Não te maçarei pois com exórdios nem com epílogos.
As histórias alheias são mais atraentes, talvez concordes.
Um homem apoiado na cerca que lhe delimita a horta.
Para lá é a mata, depois o rio, depois a banda-d’além.
Ele tem toda a vida ligada a esta sequência.
Não lhe ocorreu jamais a necessidade de outro mundo.
A ida semanal à vila é turismo q.b. a seu ver.
Tem a vindima falada com dois vizinhos do seu casal.
Não dá ele por ingénua a fala com que com eles chegou a entendimento.



29/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 413 a 416

© Jerry Uelsmann


413

Sexta-feira,
28 de Maio de 2021

Dois dias menos fáceis – mas lá vão, não voltam.
A luz de hoje é a verdade mais recorrente de quanto é & há.
Frequento as horas acordadas em aparato de solidão decente.
Muita, muitíssima gente faz o mesmo – e sem versos.
Vai de cada indivíduo o ir-levando-a-vida.
Alguma coisa, pessoal embora, pode ser transmissível.
O resto, o resto diz-se para dentro, sem êxtase ou cegueira.
A pobreza material atrapalha, mas ainda não vence.
Trabalho no sentido da livração, que é de livro & de livre.
E é só um enredo-a-sós: como muitos, muitíssimos são.

414

Desarranjos & desacatos, só dos meus para comigo.
A toda a outra humanidade, santa-paz-do-senhor.
Tenho algum tempo para deixar feita alguma coisa.
Da importância de tal coisa, descreio sem hipocrisia.

S.D. telefonou-me ontem, actualizámo-nos novas quotidianas.
Parece que no andar de baixo do dela uma brasileira grita orações.
Grita orações aos deuses-da-chuva & recebe homens concubinantes.
Por coisas destas se vê quanto são errados o império & a colonização.

S.D. não está portanto na santa-paz-do-senhor,
não o permite a brasileira do andar de baixo.
Não é isto em Coimbra mas num lugarejo mais a sul.
Tenho pena do desassossego de S.D., que bem melhor merece.

Eu tenho-me safado mais ou menos bem de impertinências.
O que mais luta me tem dado, na verdade, é o saber desprezar.
Não é arte assim tão fácil como há muito quem julgue.
Não é: ide por mim neste aspecto, que sei do que falo.

Mais algum tempo, mais algo feito – depende da saúde.
Refiro-me ao todo deste vocábulo: corpórea & mental.
Com os anos, rarefaz-se a possibilidade de entendimento alheio.
A pessoa adere à sua mesma insulação: & privadamente brinca.

Mais do que uma vez reagi com brutalidade ao que me pareceu acinte.
Graças-a-deus, nem sempre tive razão: mas valeu pela retórica.
Graças-ao-diabo, rarearam-se-me os interlocutores.
Não me vereis queixinhando-me, pachorra não abunda.

Salvou-me & resgata-me muito a bonomia da infância que vivi.
Sempre que, agora anoso, a revivo, é comigo a tal santa-paz-do-senhor.
A galeria de rapazes da minha criação, aqui a tenho, à mão da palavra.
Foi um lapso edénico, viver respondia com simplicidade a qualquer pergunta.

E as fábricas daquela zona estão em laboração? Não.
Destruíram-nas, é inimputável a ganância imobiliária.
Dispersou-se a comunidade, desenrascou-se quem pôde.
Os primeiros óbitos da minha geração datam mormente de então.

É fácil perceber que algumas coisas me amargam mais do que é são.
Morrerem-me irmãos (e dois já conto assim) não me ampara a filosofia.
Para a gente-prática, isto é normal, insondáveis-são-os-desígnios-do-senhor.
Eu, à gente-prática, estimo bem que a amargura a visite mais de três dias.

Por aqui se lê & vê que também minto: cf. os dois primeiros versos deste número.
É apenas humano, também me acontece ser reles – mas malévolo, não.
Conheço a malevolência: mas a minha é por reacção; por acção, não.
Assim é. Aqui, não minto. O sozinhismo não é de despicienda consequência.

Procedo com irregular persistência a balancetes do vivido.
Há parcelas sombrias – como a de meus dois mais recentes dias.
Nem um Winston Churchill foi imune a deprimentes nuvens.
Ninguém o é: mas os mais minerais vão-se mais bem safando.

É outro todavia o meu almirantado: de Língua Portuguesa se navega aqui.
Num verso, os rapazes da minha rua; noutro, dois irmãos mortos.
Aceito que isto seja pouco partilhável: mas eis-me em-expressão.
A cada um, seu desastre em seu estreito-de-dardanelos.

Tudo isto tem, por brincadeira, a seriedade que tem.
É sábado amanhã, desconheço que fingida repetição será o dia.
Meia-dúzia de objectos servem a possibilidade instante.
Posso viajar – desde que daqui não saia, não por ora.

Certa bruma da manhã, na Figueira da Foz, lá em outro século.
Perfeição do pequeno-comércio, autoridade do mar, esperança activa.
Onde estão esse mar, o Café do senhor João, esses comensais do Tempo?
Sim, não minto que isso presida a muita perspectiva minha.

Naquele canto desta casa, tenho o Garrett doutrinário.
Admirável escriba, extemporâneo de tão bom, muito me vale.
É companhia mais segura do que muita outra que experimentei.
Mais segura, também, do que a companhia mesma que fiz a outra gente.

Funciona a morte como terraplenagem: nem dúvida tenhamos, nem pressa usemos.
E no entanto só (alguma da) alheia me confrange & escurece.
A própria? Há-de ser adequadamente irrelevante:
mais irrelevante do que pegar-na-lancheira-e-levar-o-almoço-ao-pai.

Cegarregas & açucenas sonorizam & adoçam a serenidade sentida.
Num fósforo, há tragédia na vizinhança: morre o vizinho do NSU.
Depois, C.M. mata à facada P.F., inaudita desgraça.
Matam-nos a infância, tornam-nos consumidores de más-novas.

Os anos nem tudo levam: algo trazem.
A pacificação sexual é um exemplo forte.
Acabou-se-me a fantasmagoria ginástica.
São mais simples mistérios ora as mulheres.

Não quero com isto dizer que deixaram de ser mágicas.
Não. Elas não deixaram de ser prestidigitadoras.
O que se passa – é que já conheço os truques.
Nenhuma lágrima genital por umas cuecas compradas nos chineses.

Vivo uma contemporaneidade cujo espelho me não é aprazível.
Bocado é o que se leva à boca.
Ele há muita coisa horrível.
Horrível, imarcescível & taralhouca.

Aqui onde ’inda ando, o vento é assíduo.
Gosto de ouvi-lo clamando seu contínuo verso.
Tive uma mulher que odiava o meu amor ao vento.
Aos ares a mandei, a outros me mandou ela.

Seja-nos a cada um(a) permitido algum orgulho.
Orgulho no sentido de brio, não no de vaidade.
Afinal, alguma coisa boa alguma vez fizemos.
Eu ajudei a fazer duas Filhas – mas não as criei.

Foi por dentro que aprendi a não V. cansar com o que lêdes.
Artificiosa naturalidade domino, que em linhas volvo.
De quando em vez, meto picos de interesse:
quando me referir às próprias Filhas, interessa-Vos sempre.

Nada disto me leva a / nem tira de tribunal.
Os santos-ofícios persistem na tal gente-prática.
Dói-te-Vos-me mais se são de teu-Vosso-meu sangue:
mas também isso vai de autoclismo repuxado.

Em uma manhã piorzita de Outubro passado,
eu tinha, por junto, oito cigarros na cigarreira.
Na Fernão de Magalhães, um desprovido pediu-me um.
Dei-lhe quatro, digo eu que mear a pobreza dá em dobro riqueza.

Em relação à estrofe anterior, devo ler lido mal o Adam Smith.
Também não seria desassisado deixar de fumar, talvez em morrendo.
A política-nacional-de-saúde gosta de fumadores:
são/somos os mais fiéis pagantes de impostos.

Sou por enquanto do escalão de andarilhos-autónomos.
Vou pelas minhas pernas ainda, ainda me não locomovem a rodas.
Este é ainda o meu livro, o tal de livração (cf. 413).
Vosso também aliás, assim tal o querendo Vós.

E se me/nos aparecesse a tal pessoa estrangeira (cf. 405)?
Eu seguiria (de)dando-lhe Cesário Verde – amailo Almeida Garrett.
E se ela me/nos estranhasse: – E o Correio da Manhã jornal & TV?
Só poderia: – O-senhor-desculpe-qualquer-coisinha…

Dou pouca soltura aos papéis, são continentes eles da minha vida escrita.
Ficarão eles quando me volver eu em proscrito.
Ficarão? Numa caixa de papelão? Mais certo é sim que não.
Alguma coisa porém deixarei feita, perfeita não.

Em horas menos sensatas, dei livramento a pulsões inferiores.
Tenho conhecido gente tão medíocre quanto eu sou abebiamente.
Toda ela enfim se dissipa no nevoeiro, esse que não dá dons-sebastiões.
Mas antes isso do que casar-me rico como o Fialho de Almeida.

Esta vereda de bosque é pessoal como a espiral-digital.
Este caminho de areia bordado a camarinhas, idem.
Há alternativas de vida, muitas – mas nenhuma à morte.
Pouco dobrarão os sinos – o sacristão tem mais que fazer.

Ou então: faz no próximo Outubro quatro décadas redondas,
li na Beira Alta o Trabalho Poético de Carlos de Oliveira.
Folheei também, procrastinando-o porém, Somerset Maugham.
Era a minha era de iniciação – de que nada rejeito ainda.

Passados tempos, a morte tocou-nos em rifa.
Uns reagiram por ali, outros por acoli.
Nunca mais a suposta harmonia li’ou os elementos.
Assim estamos – e para ele seguimos como vamos.

De súbito, tive de interromper esta composição.
Um telefonema de Lisboa reteve-me por longo quarto-de-hora.
Uma voz pediu-me avaliação (escala 1 a 10) de serviços bancários.
Logo a mim, que sou & estou mais teso do que urso-polar morto na tundra.

Sempre foi, enfim, alguém querendo falar comigo.
Correu bem, avaliei produtos, serviços & atendimento como vero cliente.
Pareci o Kafka a tratar de seguros de acidentes laborais.
Ou não: mas mesmo que não, mal nenhum.

Os Ingleses no Porto não são já os discretos colonizadores d’aquando Júlio Diniz.
Os de agora são hordas vândalo-futebo’ólicas sem cabresto.
Joga-se na Invicta a Final da Liga dos Campeões.
Cervejarias portuenses pelos vistos felizes.

E na mais recente colónia britânia, vulgo Algarve,
o carnavalesco corso de retardados de Sua Majestade até brilha.
É como os “jovens” que assediam o Bairro Alto:
a iliteracia-cívica é gritante, mas o País & o Porvir são surdos.

É a alegre acefalia dos erasmus-orgasmus, o alegre euronépias.
E eu aqui a malhar no Garrett doutrinário…
Fanecas amarelas de quinze anos – e já escarépias
+ energúmenos de dezassete com semblante alimário…

Por aqui-Coimbra, a Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra
reagiu muito bem à marcha saudade-fascista do Ventura-Chega-Chaga.
Nem tudo está perdido.
Também não muito está ganho.

Este é um Presente sem nostalgia possível.
Salva-se a luz na arquitectura & no arvoredo.
Parece-me, o resto, deveras irremissível.
Mas enfim, nem valentia nem medo.

Desarranjos & desacatos
etc.

415

Penso em figuras que existem (que r-existem) obstinadamente.
Raul Brandão é uma dessas figuras obstinadas.
A sua originalidade parece-me faceta incontestável.
Os livros dele são produto de uma entrega total.
Outra figura, anterior no Tempo, é Almeida Garrett.
É ridículo limitá-lo ao aspecto dandy, taful, superficial.
Foi, pelo contrário, um grande Artista & um grande Português.
Foi Midas no tudo que tocou: Poesia, Teatro, Prosa,
Arqueologia Literário-Popular, Língua-Pátria do País que sublimou.
Tenho sido feliz relendo um & outro.
E um manifesto de felicidade, até por raro, só me fica bem.

416

Ciclistas amadores na ponte velha.
O fotógrafo por ali grassa fazendo bonecos.
Tempo indeciso, há quem receie chuva.
É uma prova popular, que a malta acarinha.
A cena faz em Julho oitenta & dois anos.
Em Setembro, a Europa entra em guerra.
O rio semelha uma veia mercurial.
O mais dele é porém areia, é de curso modesto.
No Inverno, alarga-se & alaga, dá cheias até.
Por mais quatro anos, são solteiros os meus Pais.
Restam as fotografias dessa jornada de sport.
Os ciclistas são mormente operários.
Talvez algum seja professor, não sei.
Sei muito pouco, como de costume.
Oitenta & dois anos, parece brincadeira.
E não é brincadeira alguma, é mortandade.
O fotógrafo fez bons clichés, é talentoso.
Só posso dar imagens em verbo.
Naturalmente, empobreço-Vos o cenário.
Além, a Alta: vão destruí-la em breve.
É um crime patrimonial do nosso fascismozito:
o nosso fascismozito-de-imitação-italiana.
Governa o sarcófago-ambulante de Santa Comba Dão.
Poucas crianças nas fotografias.
Talvez sejam vivas algumas ainda.
Não tenho maneira de sabê-lo.
Vi as imagens, já a noite começara,
Não estava só: o Gato dormia em flanela.
Desliguei a maquineta-de-imagens.
Recolhi-me ao leito sem pressa alguma.
Arrefecera um pouco, mas não de mais.
Certa aspereza gástrica, mas não de mais.
Há sempre que segregar futuro.
E no entanto aqueles ciclistas, aquela manhã festiva.
Rapazes de Coselhas, da Arregaça, dos Olivais, da Portela.
Vão dar a Volta à Conraria, são bravos.
Que lhes sucede depois? Onde? Para quê?
Ainda nem há quatro anos morreu Fernando Pessoa.
Raul Brandão, há cerca de nove.
Esta gente não está a pensar nisso.
É dia de sport, de descontracção sem folia.
Passa o homem dos refrescos, capilé & groselha.
Passa a mulher do bolo-de-Ançã & das queijadas.
É gente que faz pela vida, antes isto que roubar.
Até os abastados gostam do ciclismo amador.
São bravos rapazes, estão no viço da mocidade.
Estes não vão para a guerra que aí vem.
O mostrengo de Santa Comba é manhoso.
Ocorre-me algo gentil, capaz de fazer-me sorrir:
a minha Mãe tem quinze anos; o meu Pai, 22.
Corrijo: a minha Mãe terá quinze em Outubro.
O meu Pai já tem os 22, fê-los em Abril.
Sei que já se namoram; o pai dela é contra, claro.
Faltam trinta anos (talvez 31) para aquele verso do 414:
Certa bruma da manhã, na Figueira da Foz, lá em outro século
(verso primeiro da décima-quarta estrofe).
As coisas vão arranjando maneira de nascer p’ra ser.
E estas têm importância, estas coisas importam.
Atenção: não porque eu as escreva.
O que escrevo não carece de importância.
Estas coisas importam por enformarem uma mundivisão.
Entre cada Ego, cá, &, de lá, o mundo, a ponte urge. E ruge.
Essa ponte é a visão de que formos capazes.
Isto não é nem deixa de ser pragmático.
É tão-só sobreviver deixando os outros viver.
Nada de outro mundo – tudo deste mundo.



28/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 411 & 412

© DA.


411

Quarta-feira,
26 de Maio de 2021

    Embalsamada em papel-de-seda, viva porém, uma trança da minha bisavó (não sei já se do lado-mater se do -pater) havia no roupeiro dos meus Velhotes. Sonhei-a ontem durante um assomo de febre que a recente vacina me instalou sem perigo mor. Recordei-a, viva deveras, naquele segredo mnemónico. Nem em criança me angustiou tal fragmento de uma senhora que só assim posso recordar, pois que não convivi com ela, tardio de mais me deram o nascimento. Meio-sonho com meio-delírio, a condição era ideal para dormir-acordado naquele quarto, o de Pai & Mãe. Despertei, afinal vivo, já a luz era alta. A febre esvaíra-se, a vontade de viver ainda em mim trabalhava – e trabalha. A epifania da trança viva não me assombra. Era, talvez, uma pièce-de-resistance contra a autoridade do perecimento total.
    Como disse, despertei em vida, pronto para as maravilhosas aventuras que são o sal & a pimenta do quotidiano dos órfãos. O pouco a tratar, por tratado o dei. Com um duche de água quente atraí à armadilha qualquer remanência febril, expulsando-a de vez com viril chuveirada fria. Pude então desjejuar-me a preceito enquanto mirava da marquise o ofício da luz no panorama totalitário desta partida do mundo. A coisa foi compondo-se. Não sei se a noite trará ou não consigo alguma revivescência metabólica de anticorpos inquietos. Alinhavar sintaxe é já de si funcional, subsidia o viver em conformidade com cada desafio.
    Visito hoje o meu Irmão doente, lá onde ele resiste como pode à força da duração. Faz hoje 35 anos, sepultámos outro Irmão, parece muito tempo mas é na verdade um ontem-contínuo. Também por isto me não é tão difícil a relativização das supostas importâncias & urgências da vida quotidiana. A literatura sempre repara & escora algumas frinchas no paredão do Tempo.
    Terror & sobrenatural entretêm-me a espera: um filme fácil, no fim a mulher é punida – mas a narrativa fica aberta, o mal arranja sempre maneira de furar, é como a água. Perto das três da tarde, não nego que a sesta me conviria – mas não posso fazê-la hoje por causa da dita visita ao Mano. Não é uma obrigação, não é nada de heróico, épico, ou pelo avesso pícaro, lingrinhas. É tão-só sangue-do-mesmo fluindo em contemporaneidade presencial, não menos nem mais. Não sabe a minha esquerda o que a direita dá – como esta não sabe o que aquela recebe. (Sim, está correcto isto.)

412

Vi o rosto do meu Irmão espelhado na trança
da nossa Bisavó: idêntica a semblante compostura.
Isto do sangue é tudo baile, é tudo dança,
é alegria tudo, é tudo siso, tudo loucura.

Não posso valer-lhe uma migalha pragmática.
Esqueci-me de ser médico, messias-salvador.
Pouco conta agora o ser ático, o ter gramática.
Isto é aquém-da-vida, aquém-do-amor.

A minha escolha é voltar para a semana.
Vê-lo é fazer deste lápis n.º 3 (da Viarco)
o exacto telefonema que me fez perder o barco,
recolher à pensão & à seita tão profana.

(Ilegíveis, os trechos seguintes deixam de contar para qualquer d/efeito.)







26/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 409 & 410


409

Terça-feira,
25 de Maio de 2021

Duas irmãs cultivam terra delas por lei.
São-se de mútuo valimento para sempre.
Anulados estão os anos de diferença de nascimentos.
O ano natural reparte os trabalhos em ciclos.
Recorrem a trabalhadores temporários quando é de vez.
Respeitam os domingos mas não são de igreja.
Vão à missa-do-galo e à de ano-novo.
Ao lume do lar cozinham, comem, lembram, planeiam.
A casa é a de pai & mãe, pouco a mudaram.
Casa-de-banho exterior, água canalizada.
Luz eléctrica, televisor na saleta, rádio na cozinha.
A eira comum une-as aos vizinhos, o trato funciona.
Uma é Maria do Patrocínio.
Outra é Maria da Anunciação.

410

    Saí a ser literalmente inoculado.
    Tive toda a boa-sorte: serviço limpo me fizeram.
    Bons profissionais, belo serviço, toque & siga.
    Para mais, era estupenda a manhã de Maio.
    E eu, que por idade encaro cada amanhã à luz já da arqueologia, pois eu fruí o Sol, que reverberava sem peias nem freios, muita-toda a Luz, a luz tornando instantâneas as coisas mundiais. Sou agora portador do Lote n.º 21 C11-05 da Janssen/Johnson & Johnson.
    Há muito não saía à Cidade mais bonita do mundo. (Tirante a parcial, suspeita hipérbole, estava deveras bonita hoje esta Cidade.) Autocarro cumpridor do horário, viajante com passe-trânsito, ei-lo a mim navegando a & em Beleza. Pensei em filme: certos dois nomes cuja companhia física nunca mais terei. Quase nem me entristeceu tal assomo. Segui à de ante, como quem diz, fui-me à minha vida. Por saber que após o acto-vacinante teria de fazer tirocínio de meia-hora-a-ver-que-dá-a-coisa, levei a Brotéria de Fevereiro de 1953 & o Cesário de sempre. Correu-me bem. No amplo pavilhão novo, ali tão perto do meu velho Liceu, reli em discreto êxtase o Responso & Num Bairro Moderno. É muito engraçado (não no sentido histriónico mas no outro, no gracioso-de-graça) receber o verso tão cuidado do jovem Cesário, morto de tuberculose há tanto ano, em plena semi-hora convalescente de coiso-vacínico-anti-viral. É deveras gracioso. Passada a meia-hora, pus-me sem putas no meio-dia mais novo de sempre: 25 de Maio de 2021, terça-feira que Deus só não tem pela curial razão de quem-não-há-não-deve. Aí, como se dizia à mula.
    Andor de caminho, torno a casa na manhã extinta. Não há sinal, ’té ’ora, de ’senvolvimentos. A velha madre-Cidade rainhassantisabela-se sem atender à particularidade.


25/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 408

© DA.


408

Segunda-feira,
24 de Maio de 2021

    Intoxicaram os soldados de Pervitin, a droga-acelera.
    É o esplendor equívoco da guerra, dos cães-bípedes à solta.
    Podeis dizer que já passou, que o-que-lá-vai-lá-vai.
    Não, não vai: enquanto humano, o planeta será bélico.
    Provas em contrário, não as há, nunca houve, isto é certo.
    Os Stukas de hoje podem não ser tripulados, dá o mesmo.
    Ao telecomando está alguém envenenado de outro tipo de Pervitin.
    Os impérios são agora pangeográficos, impera o virtual-electro.
    Genocídio é coisa que não passa de moda.
    A vítima de ontem quer ser algoz logo que possa.
    Os consumidores são telecomandados por fazedores-do-desejo-artificial.
    As gaiolas hipercomerciais fulgem de luminárias ar-condicionadas.
    Ainda há livros – mas é quase tudo merda acéfala, oca, sem calibre nem quilate.    
    Acertadamente andareis apodando-me de pessimista: sou-o.
    Vêde o pós-colapso soviético: o ror (horror, antes) de hipermegagigamilionários instantâneos que dos destroços se alevantaram a comprar & corromper tudo.
    Vêde por aqui os tolinhos-de-esquerda & os abutres-de-direita reivindicando pátrias que nunca leram nem viram mais gorda.
    Não, não acho remédio nem escapatória: o humano caga no prato de onde come. E os mais soezes indivíduos escapam à punição que nunca deixaram de merecer.
    Assim é.
    Em alternativa, restam praias de conhecimento por conquistar. Toda uma nomenclatura aceita ser ressuscitada em prol de nova oportunidade. Há que desentulhar toneladas (nem sempre figurativas) de papel. Ontem, dei-me à revisitação de Cesário Verde / Silva Pinto. Boa foi tal hora. Para hoje, resguardado em tugúrio da macilenta meteorologia externa, sobrevoo o Garrett doutrinário compendiado por João de Castro Osório, o bom João de Castro Osório que voluntária & generosamente nos guardou cópias de Camilo Pessanha. Mas não só. Tenho acesso à gravação em filme (meados de 60/XX) de Simone de Oliveira cantando, sobre fundo orquestrado por Thilo Krassmann, Sol de Inverno, canção composta pela dupla Nóbrega e Sousa / Jerónimo Bragança. Molham-se ora (16h23m) os cortinados de sol resistente. Certa dúbia provisória claridade assedia & toma o quarto que tripulo.
    Em a francesa claridade de Avranches, estava uma família Bignon.
    Estão vindo os naziAlemães, corre a tragédia chamada Junho/1940.
    Os Bignon estão de regresso ao torrão-natal – Gisors, Normandie.
    É o que me ensina o documentário Apocalipse – Hitler Invade o Oeste (© CC – Clarke, Costelle & Cie., 2020).
    São imagens peremptórias, testemunhas deponentes da humana desgraça.
    Outras recorrem já a pantalha da atenção: documentos dactilografados escalonando o quotidiano da Cidade-Tomada-&-Dominada; um jovem chamado António José Parreira do Livramento; outros dois: Adrião & Leonel; outro: José Fialho Gouveia; e um John Cleese já entradote em décadas – mas inteligentíssimo (como) sempre.
    Pode o passado ser contemporâneo do porvir? Sê-lo-á, por enquanto não sei, hei que esperar (oxalá que muito). O que agora conta, contando vou. Contar não é talvez o verbo mais apropriado, ou feliz, para o que pretendo significar. Não sou grande contador, valha a verdade. Referia-me (o que agora conta) ao que se me impõe à atenção. Exemplo imediato: Ernst Gottlieb Baron (1696-1760) tocado em theorbo alemão (teorba ou tiorba, cá) por Chris Hirst. Ou Käbi Laretei com seu Chopin. E o Sol fez-se homem, lá fora no mundo aberto. E Bob Dylan faz hoje 80-anos-80, c’um caraças!
    Vem depois Miguel Landres, mui bom moço.
    Fez maus casamentos, que remediou queimando-os.
    Outros investimentos correram-lhe de melhor feição.
    Com assento nos proventos, viveu algumas viagens benfazejas.
    Contou essas idas & partidas a uma amiga, Cinda Telles.
    Cinda fez & organizou toda a recolha de dados proeminentes.
    Anos ultrapassaram anos, os papéis dormiram intocados.
    Então, uma consulta médica de rotina detectou o mal.
    Era nessa jóia preciosa chamada pâncreas.
    Depois da madrinha, foi Cinda a ser informada.
    Era tumor, era grave, seguia em avançada retaguarda.
    Voltou a chamar Cinda, pedindo-lhe que apressasse o livro.
    Cedeu-lhe mais fotografias dessas viagens felizes.
    Em Maio, as coisas bufaram pressa, recolheu-se à clínica.
    Teve alta a 2 de Junho, Cinda & o marido Cláudio foram buscá-lo.
    A primeira ex-mulher de Miguel quis saber se podia visitá-lo.
    Ele respondeu-lhe via Cláudio que agradecia – mas que não viesse.
    Estava muito debilitado, mal suportava a ideia de falar.
    Apagou-se nas primícias de Julho, antes de fechado o livro.
    Acontece muito – mas a ele, Miguel Landres, uma vez bastou.
    Trezes anos antes da terminação de M.L., fez uma viagem ferroviária Luís Cabrita Tropa Ávalos, recolector de curiosidades orográficas & corográficas pátrias. Apeava-se em pontos esquecidos até do Diabo, quanto mais de Deus. Botava-se a andar extensões cujas peculiaridades lapijava no canhenho de capas metálicas. Em Novembro, levou à tipografia a resma dactilografada. A 15 de Dezembro, o volume foi exposto nas montras livreiras. Teve modesto acolhimento crítico & comercial, mas ainda hoje é referência para os amadores de territórios visitados por quem sabe ler o que vê.
    Não faltam livros. Algo neles materializa a fantasmagoria do pensa-&-fala-só. Universalizam o privado, tornam particular o alheio. Convénios podem (& devem) ter lugar como ocasiões de confronto de leituras. Estas, todavia, são tão solitárias quão as escritas que as tornam possíveis. Essa solidão não tem de ser doentia. É anátema que não merece. Nesta casa, alguns vivem vidas bastante recorrentes. Uns há chegando a velhos como pessoas sábias. Outros repetem-se de mais, tornam-se de uma inconveniente impertinência que transtorna. Ou então é o olhar-ledor que se modifica, inocentando-os ou culpando-os de coisas por que não são responsáveis. Acontece-me pairar sobre releituras que me indicam, a mim mesmo, como outro. Ora, disto não vendem eles nos tais McDonald’s referidos na 14.ª linha do 405 deste livro mesmo. Ora.



24/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 402 a 407

© DA.


402

Domingo,
23 de Maio de 2021

Com pouco se diz muito, às vezes acontece.
Quem ouça, não tanto.
Quem compreenda, menos ainda.
Tragédia nenhuma.
Importância nenhuma.
Alguma coisa feita foi bem feita.
A mal, limpa-a a Natura.
Tenho visto corvos.
Tripulam a restrita imensidão do Tempo.
Não são crucifixos-volantes, são aves.
Em sintonia com os elementos, a tempo.
Lido mal com a desatenção.
Parece-me ser ela a responsável pelo tempo queimado.
Acontece dar-se contacto, mesmo em distracção.
Falo-Vos de estátuas de jardim, pedra sobre relva.
Tenho-as visto, revisto, revistado, revisitado.
Alguma antiga novidade me darão / lhes darei.
Talvez ainda saiamos um pouco.
Mas para isso temos de ter um corpo.
Mas para isso temos de ser um corpo.
Mas para isso temos de ver um corpo.
Mas para isso temos de escrever um corpo.
Mas para isso temos de ler um corpo.
Uma vez por semana é tudo isto que faço.
Refracto em dominó os dias-pedras.
Em lição-texto, os dois sincretismos.
Os dois sincretismos: o filosófico & o infante-sensorial.
Essa encosta florente ao longo da que cirandamos.
Torreões felizmente longínquos sobem a manhã.
Piscam de noite as sinaléticas aéreas.
Tragédia nenhuma.
Comédia nenhuma.
Mas estudar sempre.
Se música, Música então.
Se jardinagem, Éden então.
Por aí, nesse sentido.
Não tenho trinta anos defronte.

403

Macia roupagem de cama envolve o adormecido.
Macia Maria envolta ela também a ele junto.
Em panorama tremula aquoso o ar estremecido.
Quarenta anos um de si outro, é contar muito.

404

Na rua entre os Correios e a Tabacaria Cruzense.
O sol dá na casa azulejada a azul-da-marinha.
Há canteiro a meio da praceta a oriente.
Aí sobe a estátua do victor liberal d’antanho.
Pouco mais aqui passa do que o carteiro.
Lições particulares de piano no número 32.
Churrasqueira para fora nos números 41-43.
Houve aqui Luiz Damasceno sua infância clara.
Tem por aqui morrido muito velho original.
Onde era o grémio, é agência de seguros.
Sobrevive a casa-de-pasto das irmãs Venceslau.
A Tabacaria Cruzense passa de pai para filho para neto.

Assim idênticos passam os anos sem relevo.
A estesia do sítio vai da mania de quem a sofra.
As lições de piano, deu-as a avó, deu-as a filha, dá-as a neta.
A variante da avenida nova nasce de uma demolição.
É a casa de azulejos-marinheiros a demolir.
Também ninguém a habitava desde antes do 25 já.
Ninguém se manifesta contra, sai cara a nostalgia.
Nem há como manter postal a electro-realidade.
Morrendo todos os originais, ficam os serviços.
Escusa de passar o carteiro, é outra a vi@.
Aguentam-se as netas Venceslau, vamos lá com calma.
O que safa a Cruzense é ser agência da Santa Casa.

405

Para iluminar qualquer pessoa estrangeira que me pedisse
a tirasse de obscuridade sua quanto a coisas portuguesas,
teria eu decerto de recorrer ao que, escrevendo, Cesário disse
em rimas perfeitas de qualquer defeito defesas.

Mais eu indicaria a tal pessoa, gentil ante pedinte,
Carlos Lopes, António Livramento, Eusébio, Joaquim Agostinho:
estrelas humildes que aos pobres doaram requinte
decerto heróico, campeoníssimo, dourado em pergaminho.

Levá-la-ia depois a uma sofisticada taberna,
dessas de chão de serradura & tonéis à vista.
Falar-lhe-ia da grei clássica & da moderna,
da Língua-Pátria lhe dizendo a formosura benquista.

Pouca ajuda pois lhe daria, acaso sou pouco utilitário.
McDonald’s & coisos também temos, mas não são ponto
que eu lhe apontasse por lusíada & originário.
Mas ah sim, Cesário sempre, que eu sou doido mas não tonto.

406

    O Sporting de Braga leva a Taça para casa. Jogou bem, fez pela vida, tem mérito. O meu Benfica não jogou bem – e foi roubado. Aquela expulsão extemporânea do guarda-redes não é aceitável, mais inaceitável ainda por haver vídeo-árbitro. Jogou quase toda a partida com dez. Não é desculpa – mas é atenuante. Não importa, para o ano há mais.
    
407

    Sim. Digo-me Sim quando já a luz do dia deu lugar ao vívido tule chamado noite. Reli linhas fortes escritas por alguém quando acabara de perder outro alguém. Refiro-me à perda definitiva chamada morte, não ao banal codilho ao voltarete. Senti a força daquele desespero tão bem escrito. Li-as pela vez-prima em 1983, no Verão. Ficaram-me. Reli-as algumas vezes entretanto. Hoje voltou a acontecer. São frases muito belas, brilham no escuro como as cocleares nebulosas dos firmamentos límpidos. São as páginas escritas por Silva Pinto a 20 de Julho & a 20 de Agosto (terça-feira & sexta-feira, respectivamente) de 1886. Na primeira data, a escrita aconteceu pouquíssimas horas depois do funeral que lhe levou o querido Amigo-mor da sua vida: Cesário Verde, poeta de que muitas vezes V. falei já. Ler esse posfácio de Silva Pinto incluso na edição original d’O Livro é, paradoxalmente, fortificante – ainda mais depois de uma derrota importante do meu Benfica. Quando alguém assina tão comovente lembrança, assimilo-lhe a força. Vale a pena ser obstinado na prática de ambas, digo: lembrança & escrita. Podem não propiciar modo-de-vida – mas são a vida de outro modo. Mesmo com tanta morte na rede de tal arrastão. Mesmo assim. Em vivos é que temos de vergar essa mola, não quando mortos – que é o sono para sempre, o dormir sem madrugadas canoras ao cabo. Sim, digo-me Sim. É uma bela palavra, um fresco monolito (*), perdão, monossílabo.

    (*) Não gosto de monólito. Aceito que o escrevam e digam, mas nisto prefiro ser monolítico, sou calhau de atirar por casa.



23/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 395 a 401

© DA.


395

Sábado,
22 de Maio de 2021

    Morte nenhuma nas últimas 24, mais 523 infecções no mesmo segmento temporal. Sou picado terça que vem, 25, hora marcada: 11h34m, no Pavilhão M.M., Calhabé/Solum. Em Coimbra também, no Calhabé também, amanhã há Final da Taça de Portugal: Sport Lisboa e Benfica – Sporting Clube de Braga. Nunca fui a este Estádio Cidade de Coimbra ver um jogo. Fui algumas vezes ao demolido Municipal. Lá vai.

396

    Pela fresca da noite, no lagar amplo de Virgílio Pantaleão, havia canções & vinho velho, pessoas de fora ajuntavam-se-nos em manso sinédrio, ali mesmo houve primeiros nubentes oaristos que em casamentos floresceram empós. Os cantores tinham privilégio: não menor, o de serem acompanhados à guitarra-portuguesa por Armando Fontes & à guitarra-clássica, dita viola, por Mário de Castro. Serões houve em que à concertina se mostrou o bom Lucídio Mosca & aos ferrinhos o bom Agostinho Viana. Quantos anos arderam de então? Muitos. Demasiados. Há muito se apagou o nosso lagareiro anfitrião, como se apagaram a Celeste senhora dele; os quatro músicos; dos cantores, restam vivos tão-só o efeminado (mas discreto) Eduardinho Prior & o Manuel Claro Branquinho. Os outros, Deus haja que a Si os tenha chamado: o ruivo Anacleto Pá-Pi, o Tomé Assunção, o Mané Pintasilgo (só com um S), o Clemente da Torre. Eu ainda vivo. E a lembrança de todos também, enquanto eu viver. Quando já não, sirva a literatura de & para alguma coisa, que mais se lhe não pede.

397

    Afinal era para hoje e não para amanhã-domingo, digo: o Atlético de Madrid é campeão espanhol da época 2020-21. Foi ganhar 1-2 ao campo do Valladolid (que desceu à Segunda Divisão dos hermanos). Na Alemanha, o grande Lewandowsky, mesmo ao cair do pano contra o Augsburg, facturou o seu 41.º golo no campeonato, mais um do que o também enorme Gerd Müller conseguira no campeonato alemão de 1971-72. Agora, é esperar que o meu Benfica seja feliz, amanhã, na minha Cidade.

398

Ottla Heinke cuidou do irmão Hans-August toda a vida deste.
Foi ela a garantir a liquidação das contas fixas da casa.
Ele muito irregularmente ganhava alguma coisa com as telas.
Depois de morto, a obra dele foi objecto de intensa especulação.
Ottla acabou ficando confortavelmente remunerada.
Pagou a um arquitecto, viu com alegria o jazigo para eles dois.
O irmão esperou por ela quarenta & oito anos.
Ela morreu com 101 feitos, paciente, confiante, a mesma de sempre.
Testamentou a favor dos Fidelíssimos Pobres de Sant’Anna.
A escritura do jazigo é perpétua – por enquanto.

399

Mário, sentado nas folhas de mármore que acedem ao convento.
Noite um pouco mais fria do que esperava quando em casa.
Perto, o aqueduto preside á terrena pastagem enluarada.
Estamos em 1962, Mário deixar-nos-á em vindo 1991.
Nisto, chegam Bernardo, Fialho, Crisóstomo & Vasco.
Vão os cinco ao baile das Formosas, salão privado do Conde.
Dizeis que a República aboliu as nobiliarquias?
Dizeis bem – mas aqui é condado & há conde para ele.

Lá vão os cinco rapazes, trajando do domingo as fatiotas.
A orquestra é de acordeão, rabeca, tuba & jazz-band.
Há ponche, há orchata, há limonada, há vinho-abafado, há palitos la-reine.
Moças com suas mães, cavalheiros possidentes, um cão de louça.
A Condessinha Menina Silvana há-de tocar a sua polca ao seu piano.
É muito prendada – e feia como o sapo enjoado em charco oleoso.
Fora, no pátio alcatifado a gravilha, rutila o plenilúnio.
Dentro, os dois lacaios andorinham bandejas de prata antiga.

Mário casa-se com a Condessinha em 1968.
Bernardo morre na Guiné nesse mesmo ano.
Fialho emigra para o Canadá francófono.
Crisóstomo faz-se professor de liceu em Évora.
Vasco torna-se dono da Pensão Barata, bom negócio.
Os domingos esfumam-se través as arcadas do aqueduto.
Vai-se rachando o mármore conventual.
O cedro das Formosas lá está, sábio & calado. Espera nada.

400

    Tomás Garcia & Gabriel Homem-Cristo, professores do Colégio da Anunciada, costumam vir merendar aqui ao Orlando. Atrai-os a posta de bacalhau frito, que mastigam com broa & enxaguam com vinhaça tinta. São bons comparsas. O Orlando adora tê-los por fregueses. Reúnem-se aqui gentes do variado mundo, pintores das obras, um solicitador, o padeiro do bairro, tarefeiros, tarimbeiros, ociosos & demais tristes. Eu vou ao Orlando há onze anos. Temos um segredo, o Orlando & eu. A garrafa tem o rótulo da marca do armazenista, mas a aguardente nela é caseira, directa do alambique de Rolando, irmão de Orlando. É áspera, ilegal & maravilhosa. Já me deu muitos versos.
    Eu também fui já  professor liceal – mas ninguém o sabe aqui, ninguém mesmo. Nem Orlando, nem Gabriel, nem Tomás, ninguém. Julgo que me supõem filho-família desprecisado de trabalhar para levar o pão, o cigarro & o bagaço à boca. Eu deixo-os supor, mal não lhes faz – nem a mim, que cultivo a mais cordata indiferença por os postos, supostos & pressupostos do vão mundo. Até porque ser tão feliz nem história dá, quando muito algum verso mais-ou-menos.

401

    Silos altíssimos, verticalíssimos, de tez ocre na manhã cinzenta, à beira da ferrovia industrial, emanando o olor pungente das rações. Seres humanos formigando fora-dentro-redor-dentro-fora. Depois, a fiação, a litografia, a estatuária, a fundição, o matadouro, a camionagem, a colina coroada pelo cemitério – e além do cemitério, a creche operária. Todos estes elementos emolduram a criação da pessoa. São referências leais, nunca falham, formam em si uma pátria prática, disponível, identitária, dizível. Antes da industrialização, agricultura dita de subsistência & pesca fluvial. Alguns pedreiros, dois jardineiros, alguns cantoneiros, calafates, valadores, as mulheres invisíveis, os muitos filhos que toda a gente continua a fazer sem ontem nem amanhã. Vem depois a fábrica de caldeiras, o entreposto de refrigerantes, a escola dos cegos, pensais talvez que minto, que colmato com rípios esta prosa, tereis a V.ª razão – mas permiti-me V. que persista ainda um pouco. Faço isto sozinho, não enjeitaria um pouco de paciência, já que companhia não, alheia. Boas alamedas corro depois, é a minha ventura aeróbica, há valas com riqueza de enguias, na estrada que começam a alcatroar, além, dito Porto Santiago, passam já caminhões carregados de pedra, pinho, manilhas, barris, areia que sangra rastos de água ambarina. Tive então uma janela. Era boca-de-cena. A ela assisti à peça dos animais a que chamava meus – um ror de cães, gatos, Pai & Mãe & Irmãos, patos, pombas, lagartixas, caracóis, a Avó vinha de quando em vez, ficava duas noites, o Pai vinha dormir com a rapaziada, a Mãe & a Mãe dela dormiam na cama maior da casa, sempre me pareceu o que deveras era: uma festa de risota, entre nós rapazes o Pai de novo rapaz novo – e por enquanto perpétuo.



22/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 389 a 394

© W. Eugene Smith



389

Sexta-feira,
21 de Maio de 2021


    Dactilografando-os, reli os manuscritos de ontem.
    São ásperos e são francos – nem vírgula lhes retiro.
    Reiteradamente me fecho em repugnância ao politicamente-correcto.
    Acho certa Esguelha/Esquerda criminosamente responsável por muita merda hoje santificada. Muita merda.
    Siga.

390

    Salgueiro Maia & Diniz de Almeida são duas excepções portuguesas à imperial regra humana da mediocridade autofágica. São, são. Conforta-me saber-me Português quando eles se me impõem à lembrança. Eles dois & a Língua Portuguesa fazem-se-me de lareira ricamente acesa em serão de invernia. Por assim dizer. Não me peçam é lusofonias – tretas, bastam-me bem as minhas. E a tal Lusofonia é um pretexto merdoso para falar & escrever mal com a bênção dos idiotas-de-cátedra. É, é.
    Portugal? É a minha Casa. Outros chamarão o mesmo à sua. Fazem bem – por ser verdade. Nessa minha Casa-Língua, faço por aprender. Se fosse suíço, seria suíço. Birmânia, birmanês. Etc. Mas já agora, sou isto.
    E então, quando brinc’afagava a esfíngica majestática formosura em pêlo do senhor-meu-Gato, noticiam-me da minha terra a morte por cancro de um rapaz largos anos mais moço que eu, o Victor F., genro que foi do, também já-ido, Tonito de Jesus. É chatice melancólica, isto de se nascer na segunda metade de um século só para se morrer antes de acabada a primeira idem do seguinte. Cresce porém a novigeração deste: sã & louçã seja, que lhe pertence o alvor do milénio.
    Venha pois o novilúnio da conjunção
    Venha o plenilúnio da oposição
    Perigeu da proximidade se dê.
    Que se agitem as marés & as fêmeas.
    Cresçam minguantes na púrpur’anil.
    Dizei isso ao Victor, dizei tal ao Tonito.
    Ou a Salgueiro. Ou a Diniz.

391

    Não esqueçamos nunca que é a Max Brod & a Silva Pinto que devemos a sobrevivência física das Obras de Franz Kafka & Cesário Verde. Desobedecendo aos pedidos de última-hora que os escritores lhes fizeram (rasgar tudo, queimar tudo), legaram-nos tais obras-primas: em prosa a do senhor de Praga; em verso a do senhor de Lisboa. Não é dádiva pouca, caramba. Não a esqueçamos ou a tenhamos por menor.

392

    Rosa & Francisco, na casa que beirava o pinhal. Ali os dois, aprontando-se para a ida. Nascida antes, ela. Este era o seu segundo & derradeiro matrimónio, pois ficara viúva de Frederico muito nova, nem 25 anos perfizera sequer. São assim muitas vidas, ó Manuel-Maria.
    Cidália & Romeu, no pomar radioso, sulcado a meio pelo regato, ali onde começa o aqueduto de romano desenho. São ainda vivos estes dois, sei que sim, disse-mo Mafalda quando íamos de excursão a Aveiro. Gosto do que me disse.
    No meu tempo com Helena, fui com ela duas vezes à piscina de água-marinha do Grande Hotel. É-me escusado lamentar que isso haja sido (& desaparecido) há 38 anos já. Mas foi – e não volta. A Lena está bem casada com um mediador de seguros ali da Cruz de Morouços.
    A senhora Camila Agostinho teve banca no mercado. Passou-a à filha, que a partilha agora com a neta da mãe. Têm estas duas, à semelhança da velhota, freguesia certa. A rapariga teve casamento marcado, mas o fulano desdisse o dito, foi para o Luxemburgo com outra, que um eucalipto a desfolhar-se lhe nasça das beiças do cu.
    Conto estas passagens porque há sempre alguém que aprecia enredos simples, pode ser que tropecem nestes & estes sirvam de entretenimento inócuo. Como ouvir & ver o duo artístico britânico Gilbert & George, parceria criativa a cujas obras cheguei mercê de uma leitura que fiz de João Miguel Fernandes Jorge in As Escadas Não Têm Degraus, lá para finais dos anos 80/XX, acho.

393

    Uma álea de vivendas de beira-ribeira, além, com moldura de árvores frescas. Ali fez casa & montou vida Germano Porfírio Silvino Nascimento, pai de Marta & Rafael. Marta desde muito menina mostrou mãos-de-fada. Rafael desde muito menino sentiu curiosidade por tudo – mas por muito pouco tempo sempre. Depois Germano morreu, Marta & Rafael nem disso deram recado à mãe, senhora que tinha abandonado marido & filhos em prol de um camionista da carreira Bélgica-Holanda-Luxemburgo. Quando Eunice (a viúva contrariada, pois o divórcio nunca correra) soube, apareceu para reclamar partes. Os filhos combateram-na em tribunal, o processo arrastou-se por oito anos, ao cabo dos quais a megera ficou de mãos cheias de vento. O camionista há muito a pusera fora, ainda se temeu que ela por ali rondasse à espera de algum desfalecimento misericordioso dos filhos. Não aconteceu. Rumou ao Alentejo com outro camionista – e tudo quanto sei é mais não saber. Vejo de vez em quando Rafael, bebemos cerveja juntos. Marta, é raro vê-la. Faz costura para fora. Os manos vão-se dando.

394

    Colhe elementos esparsos, não foi costurado qualquer enredo até ora. A importância dos detalhes varia na confessa subjectividade do colector. Número de degraus de cada lanço. Onde empilhavam a lenha. A fofura do musgo rociado pelo Natal. As freiras-enfermeiras do hospício velho tomando sol no jardim, dez minutos de pausa entre malucos sem retorno. Vergastadas de chuva súbitas, o vento nas faias, a risada das raparigas através da infantaria pluvial. Lírios brancos no funeral da histérica cujos orgasmos eram espirros de água-benta. Colhe elementos, para que nada parar agora? O cheiro da terra a seguir à chuva, universal encanto desse perfume capaz de reter miligramas de Tempo na devastação. Fontanário de mármore com base de basalto, letras lavradas a cinzel & numeração romana. (Copiei a inscrição, não sei onde raio se me escondeu o papel – e tão-depressa não reverei tal bela cantaria.)



21/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 378 a 388

© Gordon Parks


378

Quinta-feira,
20 de Maio de 2021

    Vi passando um engraçado: tipo marialva-galaró à Vitorino Salomé, com boina, bigodaça & coiso. Foi perto da Praça, devia (ele) ter vindo mironar o mulherio. Sentou-se na escada dos Correios a esfumaçar enrolados-à-mão. Esqueci-o depressa.
    Notícias de vários pontos afluindo à mesma foz: invasões migratórias, massas forçando a pseudointegração em sistemas ocidentais, instalando-se, desmantelando o anfitrião peça a peça, instaurando a superstição-oficial sua, guerra no horizonte-próximo. À esquerda do espectro-político, porém, tudo bem. É uma política suicidária. O chamado Terceiro-Mundo quis a independência soberana – e obteve-a por seu jus. Mas tal soberania é apenas administrativa, boa apenas para ter poltrona na ONU. Quanto ao povo local, continuam os caciques íncolas, de conluio com as multinacionais americano-europeias + China & Rússia & Israel, a esmifrar o tutano das riquezas naturais. O povo que se dane. Ou antes: o povo que vá danar os outros povos – na Europa, de preferência. Nem só o vírus-chinês da moda é praga. A miséria exportada à força também o é. Para mais, com a misoginia & a misantropia enroupadas de o meu-Deus-é-que-é-grande-o-teu-é-mentira.
    Non, je ne suis pas Charlie.
    Ide chamar pai a outro.
    Linchai os vossos caciques.
    Fodei-vos longe.

379

    Aceito o teatro como imitação do fingimento.
    Refiro-me ao drama do chamado Real.
    As regras permitem leitura de si, são dinâmicas.
    O pior de tudo é não-viver, não é morrer.
    Morrer é vulgar, até o imbecil consegue morrer.
    Quão difícil é todavia a simplificação.
    Uma pessoa não chegar a ser aldeia, por exemplo.
    Talvez um(a) de Vós entenda a linha anterior.
    (Caso não, mal faz nenhum.) (Mal nenhum mesmo.)
    Aceito o vosso teatro: imito-Vos a sobrevivência.

380

    A minha volta não é complicada, não por fora. Faço-a mormente a pé, seguro em território de rotina. Vou despindo & despedindo coisas excedentárias & perecidas. Não segurarás a onda com as mãos. Eu também não. É uma existência só mas é só uma existência. Sentir repugnância é ferramenta de autopreservação. Uma pessoa pode ter algo a dizer. Resta-lhe aprender a fazê-lo. Tem a vida por conta. Foi o que fez Eva Braun: disse de si com os filmes domésticos, olhamos por ela aqueles homens no terraço, aqueles homens prazenteiramente congeminando a morte-em-massa. A loura concubina é das mais eficazes fazedoras de poesia-épica: um Wagner de saias operando figuras-mudas. Dando a minha volta, aprecio estas lembranças vivas de quando nem de ser já nascido precisava. Além, à face da fonte, é muito bom ler devagar o óptimo Garrett. Ali não se ouve o teor brônquico do megafone-carro-sorteio-para-os-cegos. Ali não é bem-vindo o farsolas(-diz-que-sabe-tudo). De ti não dirão nem desdirão. Sim, a minha volta exterior é fácil.

381

Águas passadas.
E trapos ao vento.
Caras requeimadas.
Muito sofrimento.

Na cama me deito
que bem me desfiz.
Sê tu mais feliz
em teu mesmo leito.

Riscam andorinhas
firmamentos claros.
Os corvos, mais raros,
versos são, não linhas.

Bô-noute, Manel.
Ai adeus, Maria.
Adeus, Daniel.
Inté qualquer dia.

382

    A tentação existe, digo, a tentação de demolir pela razão própria a (des)ordem do mundo. Demolição alguma acontece, claro. Mas razão & tentação irmanam-se, motrizes forças ambas. Tenho evitado mal a ultraortodoxia de uma razão que, minha só, só a mim serve. Os pontos de contacto com quem não é meu corpo? Pelas aduaneiras do(s) costume(s). O dinheiro, em moedas só embora, propicia o entendimento universal à escala local. Nenhuma novidade nos alvoroça – nem a mim, nem aos fornecedores.
    Isto assim na corrente quinta-feira – indiferentemente, rapaziada, indiferentemente. O mesmo com o par Edite/Cristiano, há tantos anos residente na vivenda ali à curva do Campo. Não vou agora bater-lhes à porta, mostrar-lhes esta caligrafia, prometer-lhes alvíssaras se me lerem as toleimas, mostrar-lhes quão pretensamente melhor é ser livresco do que, vamos lá, descontar por & para a previdência. Não.
    Olhai: como papagueiam os filósofos-instantâneos de funeral, “isto da vida é tudo uma passagem”. (E não é que mintam – é só que repetem de outiva só, nem pensam no que se lhes bolça da boca.)

383

    Dia 8 de Novembro de 1939 (quarta-feira).
    A.H. discursa na Cervejaria Bürgerbräukeller, em Munique.
    Comemora-se o Putsch falhado de 1923.
    Às 21h30m explode a bomba-relógio, morrem oito acólitos do tirano.
    O filho de Alois & Klara saíra porém pouco antes.
    O atentado deve-se à corajosa solidão de um carpinteiro:
    Georg Elser.
    Assim reza o documentário História do Nazismo (The Abyss, por Egmont R. Koch).
    A tentação da razão a que me referi no 382 não é a de G. Elser.
    A deste é deveras heróica, não afim da minha.
    A deste é deveras racional, nada a ver com a minha.
    O solipsismo não é a bandeira dele, como da minha é.
    Ele fê-lo pelos outros.
    Eu nem por mim faço.
    Mas isto da História é tudo uma passagem.

384

    Um homem de cadeira-de-rodas mira da varanda o panorama: o amplo campo, a linha cuja cumeeira é o castelo, para lá deste o fértil infinito oceano. Em 1984, estava em França dando-lhe no duro. Nenhuma invalidez o tolhia então. O que então o tolheu, tolheu a França: o infame ignominioso revelador Affaire Grégory. A localidade onde mataram aquele menino – é a França toda. Este homem lembra-se de tudo com reavivado horror. O imbecil do petit-juge, os rastejantes parentes, os pais do menino – e o Menino.
    Este homem voltou para Portugal pouco depois do tenebroso caso. Voltou para recompor vida cá. Foi uma das vítimas sobreviventes daquela colisão de comboio com carrinha de trabalhadores que é hoje tão-só item de estatística sinistro-viária. Cadeira-de-rodas para sempre. Deu-lhe para estudar. Livralhada, internet, revistas por assinatura. Cultiva-se. Viaja sem sair de casa. De vez em quando, é certo, a família leva-o à face do mar. Comem peixe fresco & marisco quase-vivo na tenda do velho Serafim da Foz, é muito aprazível estar vivo & ser tragaz com modos entre familiares & amigos, por acontecer poucas vezes é que vale tanto quando acontece. Assim é.

385

Em pleno sonho o rapaz segue por aquela via.
Não posso fazê-lo ouvir-me: – Não vás, é mau por aí.
Tenho de continuar sendo esse rapaz surdo.
Tenho de ter ido sem retorno por ali.

Devo dizer-lhe adeus, desejar-lhe boa-sorte que não terá.
Devo despertar de relações cortadas cerce com ele.
O mais sensato seria não seguir sonhando-o.
A insensatez é todavia da essência mesma do sonhar.

A insensatez é todavia da essência mesma do viver.
Expectativa nenhuma, é por ali que há/é ido.
Não há som nem cores nos sonhos.
Ele há coisa mais triste do que um surdo a preto-e-branco?

Sim, há: um cego a preto-e-branco; a pequena-pessoa com leucemia-infantil.
Faltou àquele rapaz uma lucidez anti-luto, sair daquela vi(d)a.
Ninguém lhe perguntou se se importaria ou não de nascer.
Parece que o mesmo se não pergunta a quem quer que nasça.

386

Todos moram numa rua
A que chamam sempre sua”

(de Fado do Cacilheiro, de Carlos Dias / Paulo da Fonseca, popularizado por José Viana).

Assim já foi comigo. Isso passou, como tudo passa.

387

Fulanos com suas Sicranas vão hoje jantar a casa dos Beltranos.
Não há-de haver grande novidade em tal repasto de afins.
Todos se aborrecem muito, a começar por cada um consigo mesmo.
Nenhum está em fase ou situação de valorar encontro & conversação.
Alexandre O’Neill deixou dito que lhe repugnava não a vida mas a vidinha.
Passado pouco tempo de dizê-lo, morreu, deixou papéis pintados.
Fulanos, Sicranas, Beltrano & Beltrana fizeram-me recordar O’Neill.
Não é mau – a concurso, vêm também Sttau Monteiro & Ferreira de Castro.
O Sttau de Angústia para o Jantar & o F.C. de A Tempestade.
Talvez também o Fernando Namora de Domingo à Tarde.
O Vergílio Ferreira de Aparição. O Eça de Alves & C.ª.
A quem lá chega, a senilidade infantiliza, tudo se mescla.
Tremula a chama, a vela parece suspirar, já foi, tudo jantado.

388

    Fica-se aquém do partilhável mais, muito mais vezes do que se logra dar de si em ponte segura com alguém do lado oposto, alguém experimentado, que não trema, vacile & se encolha à primeira suposta incoerência. Como alguns que conseguem ler-se em pleno desespero – e depois tentam dizer onde estiveram, a que assistiram, o que trazem de lá & o que lá deixaram.
    Entrecortada semântica é a dos versos que demandam ser mais do que música. O que os coitados sofrem, Zé! Planando, vi há pouco planando, como ébria, a sóbria andorinha em o quanto azul podia então Coimbra. Ela é súbdita de si-só – e no entanto ei-no-la sujeita à esquálida literatura de um pré-sexagenário que mais não faz do que mirar andorinhas, domingos-perpétuos, como & quanto cresceu o gato amarelo dos vizinhos de baixo. E a quem dizê-lo além-andorinha?
    Uma região de lagos separados por taludes naturais, uma pouca casaria de guarda a eles, nenhuma capela. Também cemitério nenhum: quando alguém morre, vela-se, é depois levado à face do fundão, faz-se a devolução à terra através da água, durante algum tempo as ossadas brincam lá longe na vertical, delas fica algum tempo o nome que usaram & as datas que conseguiram.
    E na cave grande da grande casa? A lenha bem empilhada, ’inda recendendo a bosque renidente. As máquinas brancas, grandes também: de lavar roupa, de enxugá-la, a arca das carnes, a dos peixes, a dos verdes. Prateleiras com comestíveis secos, chás, cafés, cacaus. Outras com sabão, detergentes, tudo por estrear. A árvore-de-natal sintética, uma vez por ano sobe, uma vez ao ano desce. Sim, isto é de maior simplicidade dizível.



Canzoada Assaltante