08/12/2020

VinteVinte - 150 (II & III)




150.

 

DA LIMPEZA EM CASA DO GOVERNADOR

 

Coimbra, sexta-feira, 25 de Setembro de 2020

 

(...)


(II) 

    (Coimbra não tem sido mais protagonista do corrente livro, que dediquei a todo o corrente ano, precisamente por este ser um ano mau, pandémico, temeroso & caótico não-raro. Confinado o mor tempo, fecho os olhos para ver as ruas de que necessito, as praças a que pertenço, as vielas que não pouco me enformam identitariamente. 
    Isto não seja todavia lido como lamentação. De nada me queixo. Este mundo é como é, de mim depende zero – e quanto a mundos de alternativas dimensões, não são minhas nem a matemática nem a física suficientes tais que os vislumbre sequer. Coimbra é, de todos os mundos do Mundo, o meu. Outros conheci, é verdade, mas quando digo aqui, é a este cá que me refiro. Para tal não há, aliás & felizmente, confinamento capaz.) 

III 

    Navegava entre ilhas portando mantimentos, ferramentas, correio, pequena maquinaria. Na Europa, tinha sido tipógrafo, editor, operador telefónico, ardina & trolha. Abandonou o Velho Continente no exacto dia em que completou quarenta anos. No navio de ida, não olhou para trás, preferindo fixar o olhar no horizonte remoto. 
    Viveu amancebado com uma nativa chamada Karidina. Ela morreu jovem. Anos a fio estive, perdão, esteve sozinho na choupana. Conheceu depois Miliana, recebendo-a por esposa & irmã-na-vida. Os anos desfaziam-se & refaziam-se como ondas que dão sentido à praia. Viu-se velho sem precisar de espelho. Nessa noite bebeu de mais. 
    Deixou de poder navegar. Cedeu o barco a um rapaz chamado Samir, irmão mais novo da extinta Karidina. Passou a quase não sair da choupana. Curava os animais feridos que, por mal disfarçada esmola, lhe levavam. Continuou a beber de mais no ócio involuntário da velhice. Miliana fazia a limpeza em casa do governador inglês. 
    Amanhecia muitas vezes de borco no quintal, causando a indignação das galinhas & a apreensão dos cães. A companheira devolvia-o em braços à esteira conjugal, cuja progressiva solidão a amargurava de lágrimas caladas. Sabia-o moribundo de tristeza incurável. De facto, a Europa causticava-o em sonhos sem retorno. Deixou-o a tristeza quando a própria identidade se lhe volveu estranha. O cérebro desertou-o. Passara há muito os noventa anos. Samir embarcou o cadáver, sepultou-o tão perto do sol-poente quanto possível. Um ano depois, cumprido o nojo que a dignidade impunha, Samir & Miliana entenderam-se, repovoando a esteira, que para tal servia.


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Canzoada Assaltante